Não escrevo sobre as minhas leituras tantas vezes quanto o poderia desejar, mas por vezes há obras cujo prazer de leitura é tão grande, que não temos como evitar fazer. Esta é uma delas.
Do mesmo autor, Manu Larcenet, que nos brindou anteriormente com o magnifico Relatório de Brodeck, já editado em português pela Ala dos Livros, temos agora, pela mesma editora, A Estrada, a adaptação gráfica do aclamado romance de Cormac McCarthy.
Uma história que se pode resumir em poucas palavras: a jornada de um pai e filho ao longo de uma estrada de destino incerto, atravessando um mundo devastado onde a luta pela sobrevivência é diária e feita de desconfianças. Enganadoramente simples, a premissa convida à reflexão profunda sobre a essência do ser humano.
Mantendo-se fiel ao romance original, a mais-valia de Larcenet é apresentar-nos mais uma obra absolutamente irrepreensível, com a sua extraordinária capacidade de capturar graficamente a essência humana com um toque dramático de realismo. A atmosfera da história é intensa e sombria, e é na relação familiar que une os dois protagonistas que reside o coração emocional da obra. Enquanto leitores absorvemos as angústias de um pai que, rodeado de morte, nada mais tem para oferecer ao filho senão a sua determinação em cumprir a promessa de garantir a sobrevivência de ambos. Na criança vemos uma inocência e uma esperança que desafiam as circunstâncias brutais que os cercam.
À semelhança do sucedido no citado anteriormente O Relatório de Brodeck, Larcenet transporta-nos aqui, mais uma vez, numa viagem emocional onde o instinto da sobrevivência ameaça a humanidade do homem. Agora num cenário devastador pós-apocalíptico, somos testemunhas do difícil equilíbrio entre a resiliência do adulto e a bondade da criança, que o autor habilmente gere pintando silêncios visuais ao longo de quase toda a narrativa.
O desenho, em linhas ásperas, não é apenas um complemento à narrativa. Recria um ambiente de desolação, onde as cinzas predominam, e a combinação de uma paleta de cores funestas que variam em função dos desenvolvimentos, com utilização de tons mais fortes para retratar momentos de angústia e horror e mais claros para momentos de alívio, é uma parte integral da experiência de imersão na história. O resultado é um retrato gráfico perfeito de desolação e da morte da esperança numa civilização que colapsou, e uma estrada que nos convida a uma introspeção.
Um bem-haja por ter sido a Ala dos Livros a pegar esta obra, pela garantia de qualidade de edição do objecto físico que é o livro. Nota máxima para um álbum que, não obstante ainda estarmos em Abril, é praticamente certo que se encontrará entre as minhas escolhas para as melhores leituras do ano.
Avaliação:
Boa análise Nuno. Fiquei com vontade de ler o romance original e compara-lo com a adaptação. Se dúvidas houvessem que Larcenet é um dos grandes expoentes da actual BD franco-belga, esta obra vem confirmá-lo. Esperemos que não tenhamos mais um hiato de quase 2 anos para vermos outra obra publicada por cá. Sugiro o seminal BLAST (para mim, a obra prima do autor...) e a excelente "Thérapie de groupe". E Parabéns á Ala dos Livros pela escolha.
ResponderEliminarOlá António. Obrigado. Eu não li o romance original e talvez por causa disso a leitura deste álbum foi impactante. Os desenvolvimentos ao virar de cada página foram inesperados, o que intensificou a imersão na história. Não conheço as obras que sugeriu, mas a fazer fé nas suas palavras (e uma classificação de obra-prima carrega em si uma expectativa elevada) acredito que a editora, depois destas obras magistrais - O Relatório e A Estrada - não largue o autor. O único problema que antevejo será mesmo “encaixá-lo” no ambicioso programa editorial da editora, que já tem em catálogo uma oferta de colecções de elevada qualidade.
ResponderEliminarConfesso aguardar ainda para este ano, no meio de Mercenários, Undertaker, Wild West e possivelmente Shi, a edição de Le Combat D'Henry Fleming de Steve Cuzor. Que boas leituras nos esperam!