17/08/2025

Com sabor gótico-vitoriano

 Tales From Nevermore

 


Devo confessar que dizer que sou pouco adepto do género “Terror” é manter na incerteza o que o advérbio realmente significa para mim nesta circunstância. Dizer que sou pouco é muito pouco.

 

Para mim, claro está, o “Terror” é quase pornográfico no sentido que é sempre a mesma coisa com umas quantas variações que permitem afirmar diferenças. Parece que o objectivo, ao invés do excitar, é assustar, criando aqui e ali uma sensação de desconforto e de pânico.

 

Claro que me vão falar do Saw e da inventividade daquelas maquinetas de decepar, triturar, cegar e sufocar. É verdade! São muito bem pensadas. E…?! Ou talvez me lembrem da saga do Pesadelo em Elm Street e do assassino que aparece em sonhos e que os transporta para a vida real, Freddy Krueger. Ou do Sexta-Feira 13 ou da Freira ou… ou… ou… Lamento, mas na base, para mim são todos iguais, tendo apenas o objectivo de assustar ou provocar o grito.

 

Talvez resida aqui, no grito, a minha nenhuma afinidade com o género. É que tinha uma amiga que ia ao cinema com o meu grupo da adolescência. Não só gritava desalmadamente à mínima cena “de susto”, como se agarrava repentinamente a quem estivesse ao seu lado. Conseguia sempre assustar mais do que o próprio filme. E eu, talvez tenha ficado traumatizado, sendo que a terapia nesta fase já vem tarde.

 

E, no entanto, há obras que são classificadas como sendo de terror e conseguem ultrapassar o género literário. É o caso de Drácula, o romance epistolar de Bram Stoker, ou o Frankenstein de Mary Shelly, A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe, o Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson. Curiosamente, todas elas se inserem no movimento gótico do século XIX e todas parecem ter um sabor vitoriano, embora a obra de Shelly anteceda a subida de Vitória Eugénia ao trono britânico. Mas também uma criação mais moderna como é Hellboy de Mike Mignola ultrapassa a classificação de terror que lhe foi atribuída e é mais uma magnífica série de aventuras repleta de monstros e demónios que têm o destino do mundo nas mãos. Curiosamente, um dos spin-off da série, Sir Edward Grey, mergulha também num ambiente gótico e vitoriano, sendo o personagem central um investigador do paranormal.

 

Falar destas obras e não mencionar O Corvo, também de Allan Poe, seria uma injustiça. Até porque é um corvo, o Vincent, que mais que um narrador, é o guia que nos leva pelos seis contos que compõem Tales From Nevermore, a obra da autoria de Pedro N. e de Manuel Monteiro que a Ala dos Livros publicou recentemente.

 

Sem gritos ou sustos…

 

 

Vamos às histórias!

 

Como já se disse, são seis histórias curtas que nos são apresentadas ao jeito de antologia pela dupla Manuel Monteiro e Pedro N. Na verdade, a dupla assina os contos 2, 4 e 6, sendo que o argumento está a cargo de Manuel Monteiro e o desenho é da lavra de Pedro N. Já os contos 1, 3 e 5 são da inteira autoria de Pedro N. que alia o talento artístico ao da escrita.

 

Não irei, desta vez, fazer um qualquer pequeno resumo de cada uma das histórias pois seria a melhor maneira de estragar o efeito que provocarão no leitor. Por outro lado, posso e vou salientar aquilo que torna esta obra em algo coeso e bem orquestrado.

 

Desde logo, as diferenças narrativas entre os dois autores são óbvias. Enquanto sou tentado a classificar as diferentes narrativas de Pedro Nascimento como estando mais próximas do estilo do terror gótico-vitoriano, já as de Manuel Monteiro inserem-se num estilo mais directo e contemporâneo. E de nenhuma forma afirmo isto no sentido de crítica negativa. Antes pelo contrário. O leitor tem assim duas vozes distintas, num mesmo livro, a contar-lhe diferentes histórias. De algum modo, saímos enriquecidos desta leitura. Ainda para mais porque, de forma inteligente, as histórias surgem intercaladas em termos de autoria, o que permite experimentar diferentes cadências narrativas.

 

Por outro lado, não esperem ver em Tales From Nevermore o gore ou splatter tão apreciado em certos filmes de terror. Aqui, quando há sangue ou mutilações é porque são “necessárias” à progressão narrativa. E, mesmo assim, em termos gráficos nem sempre são explícitas, recorrendo-se ao contraluz ou a sequências gráficas quase abstractas, como acontece respectivamente no conto Lisandra e em A True Angel.

 


Outro elemento de coesão da obra é o facto de todos os contos terem o chamado twist ou reviravolta final. E no caso de Tales From Nevermore, a reviravolta é mesmo final. Desengane-se o leitor se pensa que as histórias parecem resolvidas a algumas pranchas do fim. O melhor é aguardar pela reviravolta da reviravolta – sempre inventiva e desconcertante.

 

Por fim, o elemento de coesão mais evidente é o elo de ligação entre os contos – o corvo Vincent. É ele o nosso anfitrião no cemitério de Nevermore, levando-nos de campa em campa, passando por jazigos e mausoléus, dando voz àqueles que estão aí sepultados e às suas histórias. E se imaginarmos a voz e a dicção de Vincent, só o podemos fazer trazendo à lembrança Vincent Price. Já agora, num breve aparte, este corvo Vincent que lembra o “Raven” de Edgar Allan Poe que crocita incessantemente “nevermore”, remete-nos também para S. Vicente, padroeiro de Lisboa que teve a embarcação que trouxe o seu corpo para a capital acompanhada por dois corvos. E ainda para o bem conhecido herói português de banda desenhada O Corvo que tem como alter-ego, precisamente, Vicente.

 

O interessante nos momentos em que surge Vincent, no começo e fim de cada conto, é que não só estabelece o tom da narrativa como nos oferece uma certa moral justificadora das acções.

 

Em termos dos argumentos, é notório que os dois autores tiveram o cuidado de criar uma ambiência que passa de conto para conto. E tal não é coisa pouca, pois cada história não podia ser mais diferente da anterior. E, no entanto, o leitor sente aquela estranha unidade, a tal coesão que nos permite regressar a Nevermore em busca de mais narrativas.

 

Quanto à arte realista de Pedro N., em vários momentos lembra aquele traço detalhado dos ilustradores do século XIX que sombreavam e davam texturas através de diferentes tramas de traços. Esta técnica não só dá ao leitor a percepção de pormenor intrincado como, de igual modo, proporciona uma experiência visual que nos remete para a ilustração oitocentista – da qual um dos expoentes máximos foi Gustave Doré.

 

Particularmente bem conseguidas estão as cenas cuja composição é mais complexa. E é aqui que Pedro N. melhor mostra o domínio das sombras e das tramas, como se pode verificar na imagem seguinte retirada do conto A True Angel.

 


Mas as melhores pranchas (nem todas) estão reservadas para Vincent e é nelas que Pedro N. mostra o melhor da sua arte. Arte que casa na perfeição com o discurso directo de Vincent para com o leitor, criando um ambiente intimista e, por isso, envolvente. Nas páginas de Vincent, o leitor sabe sempre que vai participar de algo e, inclusive, que vai ser julgado pela leitura que faz de cada conto.

 

Uma nota ainda para as homenagens (penso que o são) que Pedro N. presta a dois artistas gráficos contemporâneos: Frank Miller e Georges Bess. Do primeiro, autor sobejamente conhecido de Daredevil, O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Sin City e 300, Pedro N. adopta o seu traço nervoso para criar o frontispício do conto Lisandra. Do segundo, autor conhecido em Portugal pelas obras Drácula, Frankenstein e O Corcunda de Notre-Dame, Pedro N. utiliza o seu tipo de traço e composição usado em Drácula para criar o frontispício de Family Ties.

Em resumo, Tales From Nevermore tem potencial de série e ambiência num género muito popular, o terror. Os seis contos estão escritos de forma inteligente e oferecem-nos sempre uma reviravolta sucedida por uma derradeira reviravolta. O traço de Pedro N., para além de eficaz, é realista e detalhado.

 

A edição da Ala dos Livros, como é hábito da editora, é muito cuidada. A capa é efectuada com um cortante central que cria o efeito de moldura. Para além disso, tem gravação a seco em alto relevo na tela preta. O efeito é o de um grimório ou de um livro que se mandou encadernar como peça única. O pormenor do fitilho negro também ajuda ao efeito.

 

Uma boa estreia da dupla Manuel Monteiro e Pedro Nascimento… com sabor gótico-vitoriano.

 

Por Francisco Lyon de Castro. 

 

 



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