Brigantus volume
2 – O Picto
Caledónia. A Batalha do Monte Gráupio. O General Cneu
Júlio Agrícola. Os Brigantes. Os Pictos. Tudo isto faz parte da História da
Escócia no tempo do Império Romano. Mais precisamente, se juntarmos todos estes
ingredientes, sabemos que corre o ano de 83 d. C. (ou 84), segundo os relatos
de Tácito, historiador e senador romano.
Os caledónios e os pictos são tão irredutíveis quanto
o personagem de ficção Astérix. São a verdadeira dor de cabeça do Império. De
Júlio César (em 55 e 54 a. C.) a Domiciano (em 84 d. C.), 1 ditador e 11
imperadores tentaram subjugar a Britânia, mas as vitórias alcançadas pelas
legiões esbarravam na tribo dos brigantes, no norte da Britânia. Em 73, os
brigantes sobreviventes da campanha levada a cabo pelo governador Quinto
Petílio Cerial são empurrados para norte para a fronteira com a Caledónia
(actual Escócia). Ainda assim, o território não é pacificado. É então que, no
ano 80, o novo governador, o general Cneu Júlio Agrícola, inicia as suas
campanhas militares em território dos brigantes, tendo como projecto mais
ambicioso a invasão da Caledónia, que tem o seu auge na sangrenta batalha do
Monte Gráupio.
Os anais de Roma contam-nos que até ao ano de 208, com
o imperador Sétimo Severo, os romanos assolaram a Caledónia com campanhas
ofensivas, sempre infrutíferas. Anos antes, até tentaram separar os brigantes
dos pictos e de outras tribos do Norte com a construção do famoso Muro de
Adriano.
Mas é o ano de 84 d. C. que aqui nos interessa. O ano
em que o general Agrícola envia a sua frota para norte e avança com a sua
infantaria ligeira. O ano em que o gigante Melonius Brigantus, antigo
legionário romano caído em desgraça, se encontra agrilhoado numa aldeia picta,
prestes a ser atacada pelas forças imperiais.
É precisamente aqui que a infeliz narrativa de Brigantus é retomada pela dupla de filho
e pai, Yves H. (argumento) e Hermann (desenho), neste segundo tomo do díptico
que a Arte de Autor acaba de publicar
com o título O Picto.
Vamos à
história!
Ano 84
d. C.
Ferido
em combate, enquanto fazia ainda parte das tropas romanas, Melonius Brigantus
foi recolhido inconsciente às portas da aldeia picta. Pictos aos quais
pertence, pois essa era a origem da sua mãe. Mas essa razão não basta para o
favorecer. O chefe do clã mantém-no prisioneiro. Como pode ele confiar em
Brigantus, um picto que se virou para os favores dos invasores romanos e que
agora volta a casa? Um picto recolhido em criança por uma legião que o entregou
a uma serva brigante?
Brigantus
tenta explicar a Gwer, o chefe do clã, quais as razões que o fizeram voltar,
bem como os motivos que o movem na direcção da vingança. O gigante conta a Gwer
que o acampamento de onde vem está enfraquecido, espera reforços que tardam a
chegar e que esta é a oportunidade ideal para os pictos desferirem um golpe
mortal nos romanos.
Em
parte convencido, Gwer deixa a segurança relativa da aldeia em busca dos outros
chefes de clã com o intuito de formar uma coligação contra os romanos.
Enquanto
isso, no acampamento romano impera o orgulho.
O praefectus Flavius quer atacar rapidamente a aldeia picta, mesmo
antes que cheguem os reforços do general Agrícola. Quer cobrir-se de glória e
não deixar que os louros da vitória recaiam sobre o poderoso general. Nisto é
secundado pelo optio Vigilius, a quem
manda numa expedição de reconhecimento, como batedor, antes que o ataque à
aldeia se realize. Vigilius que Brigantus conhece bem como seu atormentador
pessoal.
Os dois
lados preparam-se. A batalha está iminente. Se as legiões de Agrícola não
chegarem, as forças estão equilibradas. Pictos e romanos estão convictos da
vitória. Mas há muitas variáveis em jogo e Brigantus deve escolher em
definitivo um dos lados…
Yves H.
e o seu pai Hermann – decano da Banda Desenhada franco-belga – terminam aqui a
história de Brigantus, um díptico que até poderia ser considerado do género péplum, não fosse a inexistência da
grandiosidade da civilização romana, da romanização e do fulgor do império.
Aliás, é o próprio Hermann que lança o repto ao leitor para que veja Brigantus como um western.
Se não,
vejam! Estamos na última fronteira do Império, como a do Oeste Selvagem. Nem a
terrível fronteira com o Danúbio, em território germânico, se mostrou tão
inexpugnável. A guerra faz-se, maioritariamente, pela guerrilha, uma acção
bélica de desgaste constante. A romanização é algo insipido, sem sustento. A pax romana não tem aqui lugar e a lei
não tem aplicação. E quando tem, é um pouco como a “oeste de Pecos”, onde um
dito juiz Roy Bean a aplicava a seu belo prazer. Na Caledónia, perdoem-me o
anacronismo, só faltam mesmo os colts a serem sacados, não em duelos ao sol,
mas por entre as brumas.

O
ambiente criado pela narrativa de Yves H. é cru, brutal, sem concessões e,
sobretudo, opressivo e até claustrofóbico. Na maior parte das vezes, não há
horizontes longínquos, pois a visibilidade não ultrapassa os quatro ou cinco
metros e às vezes nem isso. O nevoeiro e a chuva dominam a acção que até parece
confinada à Nostromo do Oitavo Passageiro.
Como então, parece possível surgir um Alien, um romano ou um picto mesmo ao
nosso lado, vindo do nada. E isso serve para os dois lados; o leitor sente-se
oprimido pois os fenómenos atmosféricos ajudam de igual forma romanos e pictos;
nenhum tem vantagem e o desfecho de qualquer confronto é imprevisível.
Este
ambiente pesado não é um mero artifício estético por parte de Hermann. É um
subterfúgio consciente da narrativa de Yves H. O que se pretende aqui, como já
referi num texto anterior dedicado ao primeiro volume de Brigantus, “é mostrar,
sobretudo, a fealdade da humanidade e o seu lado de besta desgovernada onde a
animosidade constante tem lugar de destaque.” Para que isso aconteça na
narrativa, há que eliminar todos os pontos de possível distração e levar o
olhar do leitor a focar-se na rudeza dos personagens.
Curiosamente,
é em Melonius Brigantus, o gigante sanguinário, que vemos lampejos de
humanidade e até de sabedoria. Mas isso só o leitor sabe, pois só o leitor tem
acesso aos seus pensamentos, numa voz-off poética e contemplativa.
Brigantus
é um pária. Nunca aceite plenamente pelos romanos, rejeitado pelos pictos, que
estão mais próximos do seu sangue, é ao legionário desgraçado que se apresenta,
quase de forma cândida, o dilema maior do díptico: de que lado combater? Ao
nível humano, é ele o centro de toda a intriga. Ao nível histórico, são romanos
contra os “caras azuis” ou pictos. É tudo simples, numa história muito directa,
sem tempo para grandes floreados. O resultado é uma falta de requinte,
elegância e delicadeza. Mas, afinal, é isso mesmo que se pretende da história
de um homem que é considerado por todos como um traidor e que tenta sobreviver
nos dois lados do conflito histórico.
Mas
Brigantus nem pensa que trai. Brigantus, máquina de guerra brutal, nem gosta de
conflitos. Brigantus só quer a paz que a vida nunca lhe proporcionou.
É
nestas circunstâncias que encontramos o ponto forte da narrativa de Yves H. O
niilismo absorve qualquer ponto de luz que pudesse advir da esperança que o
protagonista tem numa vida melhor. A atmosfera de desespero, tal como faz com
as paisagens, engole todos os personagens e regurgita-os, mortos ou estropiados
de sentimentos.
Na
narrativa de Yves H. não há espaço para regressos ao passado. Não há espaço
para grandes justificações, porquês ou circunlóquios. O espaço é para a
urgência reptiliana da sobrevivência e da crença num futuro mais sereno. Pelo
caminho fica a densificação psicológica dos personagens, mas esta torna-se
secundária para uma história dedicada à entropia das almas.
Entropia
que, propositadamente ou não, se reflete também no traço do “javali das
Ardenas”. Hermann, o desenhador virtuoso à beira dos 87 anos, que continua a
realizar as suas pranchas à mão livre e em cores directas.
Como já
se disse em relação à narrativa, o ambiente é opressivo e pesado. Para que isso
aconteça em termos visuais, Hermann usa o nevoeiro como elemento quase
epidémico, que tudo envolve e que parece até invadir o interior das cabanas
pictas. Para quem já viu o artista a pintar as suas vinhetas, sabe que isto é
conseguido muito por instinto e experiência, com a utilização à “mão livre” das
suas cores directas. O resultado, lá está, é a evolução da acção sempre num
ambiente pesado, plúmbeo, onde são raras as vezes em que se avista o azul do
céu.
Mas,
por vezes, o velho mestre lá nos dá um vislumbre de luz, talvez para enganar os
mais crédulos e colocar-lhes na mente a ideia de que a esperança, tal como o
céu, deve ser eterna. O que devemos ter em consideração é que os céus de
Brigantus são de um azul pálido, sempre com nuvens escuras no horizonte, ou
auroras sobre as quais o cinzento parece consumir o amarelo.
De
resto, Hermann não desilude com os seus famosos nocturnos, nos quais, como
sempre, demonstra um domínio perfeito dos pretos e cinzentos.
Nem
quando quer dar a impressão ao leitor que uma centúria romana é algo de quase
majestático, misturando planos picados com contra-picados de forma inteligente,
como se pode verificar na segunda imagem abaixo. Ou quando faz surgir no
horizonte, imponente, a frota do general Agrícola.
Muitos
exemplos positivos podem ser dados acerca da arte de Hermann neste segundo
volume de Brigantus. Mas talvez o
melhor seja o que se refere à mise-en-scène das batalhas. A colocação em cena
dos participantes, antes e durante o choque dos dois lados, é algo de
sensacional. O leitor nunca vê a batalha como um todo porque o artista não o
permite. Antes, ele foca a sua “câmara” em grupos de homens, aumentando o
efeito da carnificina na mente do observador. A disciplina da centúria romana
desaparece no combate corpo-a-corpo e a anarquia passa a reinar no campo de
batalha. Os cinzentos passam a ser tingidos pelo rubro do sangue e a esperança,
mais uma vez, parece não ter lugar nesta história.

Mas se
a arte de Hermann pode ser aqui apreciada em toda a sua magnitude, há que dizer
que também pode ser observada no seu lado menos conseguido. Ao longo do livro,
várias vezes, é gritantemente visível a disformidade de alguns personagens bem
como a desproporcionalidade entre elas. E até algumas perspectivas são falhas
para um olhar mais atento.
Mas, a
bem da verdade, Hermann até disto tira partido, pois o ambiente pesado fica
mais pesado, e os personagens grotescos ficam mais grotescos. Parece que tudo e
todos são personagens de um pesadelo que conseguiram passar para o mundo real.
Uma
última palavra para as duas cenas finais. Numa, Brigantus foge num esquife,
durante a noite de tempestade. Na outra, vê-se chegado a uma praia luminosa e a
um futuro esperançoso. O interessante é ver como Hermann faz a transição entre
uma e outra cena e o choque que é ver a paleta de cores utilizada ao longo da
obra a dar por fim lugar a uma nova paleta.
Ao
longo dos anos, Yves H. já escreveu 22 álbuns para o seu pai desenhar. Mas
nunca se tinha aventurado pela Antiguidade Clássica.
Consegue
fazê-lo agora com este díptico. Mas Brigantus
quebra as convenções do péplum e coloca o centro da acção numa Caledónia
brumosa com céus de chumbo. A grandeza do Império Romano não está presente.
“Temos aqui uma Roma sombria, longe de casa.”
O clima
é agreste. Os personagens são rudes e grotescos. As suas feições são duras e
abrutalhadas. O ambiente é opressivo e de tensão constante. E o objectivo
máximo de ambas as partes é a vingança.
O
díptico lê-se de um fôlego, em parte pelo típico argumento minimalista a que
Yves H. já nos habituou, e em outra parte pela ausência de longos recitativos.
Mas também pelas cenas de acção bem coreografadas e violentamente sanguinárias.
Acima
de tudo sobressai Brigantus, no seu percurso de vingança e redenção. Brigantus,
o portador de luz que a esconde dentro de si. O bardo que é ouvido apenas por
si próprio. O homem, monstruoso por fora, mas cuja bestialidade do seu ser não
consegue penetrar a carapaça dos seus pensamentos.
Brigantus quer sobreviver ao mundo que o rejeita e o coloca em
perigo. Brigantus não quer ser selvagem nem civilizado. Enquanto à sua volta as
almas se entregam, amorfas, ao princípio da entropia, Brigantus, com a sua
rudeza poética, só quer viver em paz.
EXTRA
Com quase 87 anos,
Hermann mantém-se imparável. Neste momento, tem já mais de uma dezena de
pranchas terminadas da sua nova obra com argumento de Yves H. O título
provisório é Cartagena. Não a do
Chile, da Colômbia ou de Espanha. Uma Cartagena ficionada.
Deixo-vos a primeira
prancha.
Por Francisco Lyon de Castro