19 abril, 2025

A conclusão de Brigantus pelo olhar de Francisco Lyon

 

Brigantus volume 2 – O Picto

A Rudeza Poética da Entropia das Almas


Caledónia. A Batalha do Monte Gráupio. O General Cneu Júlio Agrícola. Os Brigantes. Os Pictos. Tudo isto faz parte da História da Escócia no tempo do Império Romano. Mais precisamente, se juntarmos todos estes ingredientes, sabemos que corre o ano de 83 d. C. (ou 84), segundo os relatos de Tácito, historiador e senador romano.

Os caledónios e os pictos são tão irredutíveis quanto o personagem de ficção Astérix. São a verdadeira dor de cabeça do Império. De Júlio César (em 55 e 54 a. C.) a Domiciano (em 84 d. C.), 1 ditador e 11 imperadores tentaram subjugar a Britânia, mas as vitórias alcançadas pelas legiões esbarravam na tribo dos brigantes, no norte da Britânia. Em 73, os brigantes sobreviventes da campanha levada a cabo pelo governador Quinto Petílio Cerial são empurrados para norte para a fronteira com a Caledónia (actual Escócia). Ainda assim, o território não é pacificado. É então que, no ano 80, o novo governador, o general Cneu Júlio Agrícola, inicia as suas campanhas militares em território dos brigantes, tendo como projecto mais ambicioso a invasão da Caledónia, que tem o seu auge na sangrenta batalha do Monte Gráupio.

Os anais de Roma contam-nos que até ao ano de 208, com o imperador Sétimo Severo, os romanos assolaram a Caledónia com campanhas ofensivas, sempre infrutíferas. Anos antes, até tentaram separar os brigantes dos pictos e de outras tribos do Norte com a construção do famoso Muro de Adriano.

Mas é o ano de 84 d. C. que aqui nos interessa. O ano em que o general Agrícola envia a sua frota para norte e avança com a sua infantaria ligeira. O ano em que o gigante Melonius Brigantus, antigo legionário romano caído em desgraça, se encontra agrilhoado numa aldeia picta, prestes a ser atacada pelas forças imperiais.

 

É precisamente aqui que a infeliz narrativa de Brigantus é retomada pela dupla de filho e pai, Yves H. (argumento) e Hermann (desenho), neste segundo tomo do díptico que a Arte de Autor acaba de publicar com o título O Picto.

 

Vamos à história!

 

Ano 84 d. C.

Ferido em combate, enquanto fazia ainda parte das tropas romanas, Melonius Brigantus foi recolhido inconsciente às portas da aldeia picta. Pictos aos quais pertence, pois essa era a origem da sua mãe. Mas essa razão não basta para o favorecer. O chefe do clã mantém-no prisioneiro. Como pode ele confiar em Brigantus, um picto que se virou para os favores dos invasores romanos e que agora volta a casa? Um picto recolhido em criança por uma legião que o entregou a uma serva brigante?

 

Brigantus tenta explicar a Gwer, o chefe do clã, quais as razões que o fizeram voltar, bem como os motivos que o movem na direcção da vingança. O gigante conta a Gwer que o acampamento de onde vem está enfraquecido, espera reforços que tardam a chegar e que esta é a oportunidade ideal para os pictos desferirem um golpe mortal nos romanos.

 

Em parte convencido, Gwer deixa a segurança relativa da aldeia em busca dos outros chefes de clã com o intuito de formar uma coligação contra os romanos.

 

Enquanto isso, no acampamento romano impera o orgulho.

 

O praefectus Flavius quer atacar rapidamente a aldeia picta, mesmo antes que cheguem os reforços do general Agrícola. Quer cobrir-se de glória e não deixar que os louros da vitória recaiam sobre o poderoso general. Nisto é secundado pelo optio Vigilius, a quem manda numa expedição de reconhecimento, como batedor, antes que o ataque à aldeia se realize. Vigilius que Brigantus conhece bem como seu atormentador pessoal.

 

Os dois lados preparam-se. A batalha está iminente. Se as legiões de Agrícola não chegarem, as forças estão equilibradas. Pictos e romanos estão convictos da vitória. Mas há muitas variáveis em jogo e Brigantus deve escolher em definitivo um dos lados…

 

 

Yves H. e o seu pai Hermann – decano da Banda Desenhada franco-belga – terminam aqui a história de Brigantus, um díptico que até poderia ser considerado do género péplum, não fosse a inexistência da grandiosidade da civilização romana, da romanização e do fulgor do império. Aliás, é o próprio Hermann que lança o repto ao leitor para que veja Brigantus como um western.

 

Se não, vejam! Estamos na última fronteira do Império, como a do Oeste Selvagem. Nem a terrível fronteira com o Danúbio, em território germânico, se mostrou tão inexpugnável. A guerra faz-se, maioritariamente, pela guerrilha, uma acção bélica de desgaste constante. A romanização é algo insipido, sem sustento. A pax romana não tem aqui lugar e a lei não tem aplicação. E quando tem, é um pouco como a “oeste de Pecos”, onde um dito juiz Roy Bean a aplicava a seu belo prazer. Na Caledónia, perdoem-me o anacronismo, só faltam mesmo os colts a serem sacados, não em duelos ao sol, mas por entre as brumas.

 

O ambiente criado pela narrativa de Yves H. é cru, brutal, sem concessões e, sobretudo, opressivo e até claustrofóbico. Na maior parte das vezes, não há horizontes longínquos, pois a visibilidade não ultrapassa os quatro ou cinco metros e às vezes nem isso. O nevoeiro e a chuva dominam a acção que até parece confinada à Nostromo do Oitavo Passageiro. Como então, parece possível surgir um Alien, um romano ou um picto mesmo ao nosso lado, vindo do nada. E isso serve para os dois lados; o leitor sente-se oprimido pois os fenómenos atmosféricos ajudam de igual forma romanos e pictos; nenhum tem vantagem e o desfecho de qualquer confronto é imprevisível.

 

Este ambiente pesado não é um mero artifício estético por parte de Hermann. É um subterfúgio consciente da narrativa de Yves H. O que se pretende aqui, como já referi num texto anterior dedicado ao primeiro volume de Brigantus, “é mostrar, sobretudo, a fealdade da humanidade e o seu lado de besta desgovernada onde a animosidade constante tem lugar de destaque.” Para que isso aconteça na narrativa, há que eliminar todos os pontos de possível distração e levar o olhar do leitor a focar-se na rudeza dos personagens.

 

Curiosamente, é em Melonius Brigantus, o gigante sanguinário, que vemos lampejos de humanidade e até de sabedoria. Mas isso só o leitor sabe, pois só o leitor tem acesso aos seus pensamentos, numa voz-off poética e contemplativa.

 

Brigantus é um pária. Nunca aceite plenamente pelos romanos, rejeitado pelos pictos, que estão mais próximos do seu sangue, é ao legionário desgraçado que se apresenta, quase de forma cândida, o dilema maior do díptico: de que lado combater? Ao nível humano, é ele o centro de toda a intriga. Ao nível histórico, são romanos contra os “caras azuis” ou pictos. É tudo simples, numa história muito directa, sem tempo para grandes floreados. O resultado é uma falta de requinte, elegância e delicadeza. Mas, afinal, é isso mesmo que se pretende da história de um homem que é considerado por todos como um traidor e que tenta sobreviver nos dois lados do conflito histórico.

 

Mas Brigantus nem pensa que trai. Brigantus, máquina de guerra brutal, nem gosta de conflitos. Brigantus só quer a paz que a vida nunca lhe proporcionou.

 

É nestas circunstâncias que encontramos o ponto forte da narrativa de Yves H. O niilismo absorve qualquer ponto de luz que pudesse advir da esperança que o protagonista tem numa vida melhor. A atmosfera de desespero, tal como faz com as paisagens, engole todos os personagens e regurgita-os, mortos ou estropiados de sentimentos.

 


Na narrativa de Yves H. não há espaço para regressos ao passado. Não há espaço para grandes justificações, porquês ou circunlóquios. O espaço é para a urgência reptiliana da sobrevivência e da crença num futuro mais sereno. Pelo caminho fica a densificação psicológica dos personagens, mas esta torna-se secundária para uma história dedicada à entropia das almas.

 

Entropia que, propositadamente ou não, se reflete também no traço do “javali das Ardenas”. Hermann, o desenhador virtuoso à beira dos 87 anos, que continua a realizar as suas pranchas à mão livre e em cores directas.

 

Como já se disse em relação à narrativa, o ambiente é opressivo e pesado. Para que isso aconteça em termos visuais, Hermann usa o nevoeiro como elemento quase epidémico, que tudo envolve e que parece até invadir o interior das cabanas pictas. Para quem já viu o artista a pintar as suas vinhetas, sabe que isto é conseguido muito por instinto e experiência, com a utilização à “mão livre” das suas cores directas. O resultado, lá está, é a evolução da acção sempre num ambiente pesado, plúmbeo, onde são raras as vezes em que se avista o azul do céu.

 

 

Mas, por vezes, o velho mestre lá nos dá um vislumbre de luz, talvez para enganar os mais crédulos e colocar-lhes na mente a ideia de que a esperança, tal como o céu, deve ser eterna. O que devemos ter em consideração é que os céus de Brigantus são de um azul pálido, sempre com nuvens escuras no horizonte, ou auroras sobre as quais o cinzento parece consumir o amarelo.

 



De resto, Hermann não desilude com os seus famosos nocturnos, nos quais, como sempre, demonstra um domínio perfeito dos pretos e cinzentos.

 

Nem quando quer dar a impressão ao leitor que uma centúria romana é algo de quase majestático, misturando planos picados com contra-picados de forma inteligente, como se pode verificar na segunda imagem abaixo. Ou quando faz surgir no horizonte, imponente, a frota do general Agrícola.

 




Muitos exemplos positivos podem ser dados acerca da arte de Hermann neste segundo volume de Brigantus. Mas talvez o melhor seja o que se refere à mise-en-scène das batalhas. A colocação em cena dos participantes, antes e durante o choque dos dois lados, é algo de sensacional. O leitor nunca vê a batalha como um todo porque o artista não o permite. Antes, ele foca a sua “câmara” em grupos de homens, aumentando o efeito da carnificina na mente do observador. A disciplina da centúria romana desaparece no combate corpo-a-corpo e a anarquia passa a reinar no campo de batalha. Os cinzentos passam a ser tingidos pelo rubro do sangue e a esperança, mais uma vez, parece não ter lugar nesta história.

 


Mas se a arte de Hermann pode ser aqui apreciada em toda a sua magnitude, há que dizer que também pode ser observada no seu lado menos conseguido. Ao longo do livro, várias vezes, é gritantemente visível a disformidade de alguns personagens bem como a desproporcionalidade entre elas. E até algumas perspectivas são falhas para um olhar mais atento.

 

Mas, a bem da verdade, Hermann até disto tira partido, pois o ambiente pesado fica mais pesado, e os personagens grotescos ficam mais grotescos. Parece que tudo e todos são personagens de um pesadelo que conseguiram passar para o mundo real.

 

Uma última palavra para as duas cenas finais. Numa, Brigantus foge num esquife, durante a noite de tempestade. Na outra, vê-se chegado a uma praia luminosa e a um futuro esperançoso. O interessante é ver como Hermann faz a transição entre uma e outra cena e o choque que é ver a paleta de cores utilizada ao longo da obra a dar por fim lugar a uma nova paleta.


Ao longo dos anos, Yves H. já escreveu 22 álbuns para o seu pai desenhar. Mas nunca se tinha aventurado pela Antiguidade Clássica.

 

Consegue fazê-lo agora com este díptico. Mas Brigantus quebra as convenções do péplum e coloca o centro da acção numa Caledónia brumosa com céus de chumbo. A grandeza do Império Romano não está presente. “Temos aqui uma Roma sombria, longe de casa.”


O clima é agreste. Os personagens são rudes e grotescos. As suas feições são duras e abrutalhadas. O ambiente é opressivo e de tensão constante. E o objectivo máximo de ambas as partes é a vingança.


O díptico lê-se de um fôlego, em parte pelo típico argumento minimalista a que Yves H. já nos habituou, e em outra parte pela ausência de longos recitativos. Mas também pelas cenas de acção bem coreografadas e violentamente sanguinárias.


Acima de tudo sobressai Brigantus, no seu percurso de vingança e redenção. Brigantus, o portador de luz que a esconde dentro de si. O bardo que é ouvido apenas por si próprio. O homem, monstruoso por fora, mas cuja bestialidade do seu ser não consegue penetrar a carapaça dos seus pensamentos.
 

Brigantus quer sobreviver ao mundo que o rejeita e o coloca em perigo. Brigantus não quer ser selvagem nem civilizado. Enquanto à sua volta as almas se entregam, amorfas, ao princípio da entropia, Brigantus, com a sua rudeza poética, só quer viver em paz.


 

EXTRA

Com quase 87 anos, Hermann mantém-se imparável. Neste momento, tem já mais de uma dezena de pranchas terminadas da sua nova obra com argumento de Yves H. O título provisório é Cartagena. Não a do Chile, da Colômbia ou de Espanha. Uma Cartagena ficionada.

Deixo-vos a primeira prancha.


 

 Por Francisco Lyon de Castro

 

18 abril, 2025

Lançamento DEVIR: My Hero Academia - volume 25

Na quase dezena de novidades que a DEVIR preparou para este mês de Abril, encontramos mais um volume da colecção MY HERO ACADEMIA. Já disponível nas livraria está o 25º livro desta saga: Shigaraki Tomura: a origem.

SHIGARAKI TOMURA: A ORIGEM
Desde o terrível incidente em que a habilidade de Tomura se manifestou, apenas o maior vilão de todos, All For One, foi capaz de falar ao coração do jovem. As consequências desse fatídico encontro desenrolam-se no presente, com Tomura e o líder do Exército de Libertação a lutarem pela supremacia, mesmo que seja preciso arrasar uma cidade inteira para decidir quem está no topo.
 
Ficha técnica:
My Hero Academia vol. 25 - Shigaraki Tomura: a origem
De Kohei Horikoshi
Capa mole, dimensões 128x190, p/b, 196 páginas.
ISBN 978-989-559-672-0
PVP: € 9,99
Edição DEVIR

17 abril, 2025

Alack Sinner, Bófia ou Detective faz a sua estreia em Portugal!

 

Chegou hoje às livrarias o segundo volume da colecção Angoulême da editora DEVIR. Estreia entre nós as histórias de ALACK SINNER, um detetive privado nova-iorquino, criação dos autores argentinos, o argumentista Carlos Sampayo e o desenhador José Muñoz.  Desta mesma dupla, já tivemos editado por cá, a biografia gráfica de Billie Holiday (edição Levoir, 2015). 

Com Alack Sinner, a história passa-se numa Nova Iorque crua e cinzenta, onde vive este ex-polícia desencantado, que bebe demais, mas que mantém um forte senso de justiça e uma postura intransigente perante a corrupção que o rodeia. A narrativa está repleta de estereótipos e frases feitas, herdadas diretamente do imaginário do romance negro e do cinema policial clássico. Mas longe de ser uma simples repetição de clichés, é um relato espirituoso, ao mesmo tempo mordaz e melancólico, de uma sociedade obcecada, racista e gananciosa. Uma crítica afiada e sem ilusões, que nos faz lembrar os mundos sombrios de Raymond Chandler ou a dureza gráfica de Chester Gould.

O formato desta edição já se sabe, é o pequeno 17 por 24, mas atendendo que o desenho de Muñoz não é tão exuberante como o de Bilal do volume anterior, pode ser que resulte aqui.

Ficha técnica:
Alack Sinner - Bófia ou Detetive
De Carlos Sampayo e Jose Muñoz
Colecção Angoulême
Capa dura, formato 177x248, p/b, 168 páginas. 
ISBN: 9789895597130
PVP: € 22,00
Edição DEVIR 
 

16 abril, 2025

Lançamento ASA: O Ditador e o Dragão de Musgo

Com um título que nos remete logo para o imaginário cinematográfico dos filmes de kung-fu, O DITADOR E O DRAGÃO DE MUSGO é a novidade da ASA que chegou hoje às livrarias.
 
Trata-se de uma história absolutamente incrível baseada em factos reais, do rapto de Shin Sang-Ok, um dos mais importantes cineastas da Coreia do Sul, por agentes norte-coreanos a mando do ditador Kim Jong-il, que pretendia transformar a indústria cinematográfica do seu país numa máquina de propaganda. A dupla de autores, Fabien Tillon e Fréwé, apresentam uma história inusitada, onde a ficção se entrelaça com a realidade, que é, simultaneamente, uma homenagem ao cinema asiático dos anos 70.
 
O DITADOR E O DRAGÃO DE MUSGO
Hong-Kong, 1978. O realizador e produtor Shin Sang-Ok – estrela da Coreia do Sul – anda à procura da sua mulher, a atriz Choi Eun-hee, desaparecida há várias semanas. Até que acaba por ser, também ele, raptado. Tal como muitos outros artistas japoneses, chineses ou coreanos antes dele, foi levado para servir a Coreia do Norte. A sua missão: realizar, em nome da ditadura, filmes que marcarão a história do cinema de Pyongyang. 
 
Ficha técnica:
O Ditador e o Dragão de Musgo
De Fabien Tillon e ilustração de Fréwé
Capa mole, formato 211x265, cores, 144 páginas.
ISBN: 9789892363912
PVP: € 24,90
Editor EDIÇÕES ASA
 

15 abril, 2025

Lançamento DEVIR: Oshi No Ko - volume 2

O segundo volume da nova colecção manga da DEVIR, que aborda o lado negro da indústria do entretenimento japonês chega esta semana às livrarias.

OSHI NO KO destaca-se como uma obra impactante, onde, por trás de uma envolvente história de vingança, se esconde uma crítica incisiva à busca incessante pela fama num universo dominado por ídolos.

OSHI NO KO 2
Aqua e Ruby são gémeos que apreciam a vida de bebés que reencarnaram como filhos de Ai Hoshino, a sua ídolo favorita! Mas essa fase acaba quando Ai é assassinada. O tempo passa, e os adolescentes entram para o secundário ao mesmo tempo em que mergulham no mundo do entretenimento. Ruby, para brilhar como Ai. Aqua, para se vingar. 
 
Ficha técnica:
Oshi No Ko - volume 2
De Aka Akasaka e Mengo Yokoyari
Capa mole, dimensões 129x190, p/b, 192 páginas.
ISBN: 9789895596973
PVP: € 9,99
Edição DEVIR

14 abril, 2025

Astérix e O Combate dos Chefes em Edição Limitada!

A partir de amanha chega às livrarias nacionais uma nova edição da aventura de Astérix, O COMBATE DOS CHEFES.

Trata-se de uma edição especial limitada do álbum original, que inclui um exclusivo de 16 páginas de material documental  inédito oriundo dos arquivos pessoais dos autores, que inclui a reprodução da prancha publicada nas páginas da revista Pilote, onde o próprio Matasétix, em conferência de imprensa,  anuncia o inicio da publicação desta história, e uma pequena curiosidade acerca da prancha 34 desta aventura, relacionada com um tal de... Parque Astérix. O dossier inclui ainda os bastidores da produção da série de animação, com o mesmo título, que a Netflix vai estrear no final deste mês.

Editado originalmente em França em 1966, com uma tiragem incrível de 600.000 exemplares, Astérix – O Combate dos Chefes já foi amplamente publicado em Portugal por diversas editoras. A primeira edição nacional remonta a 1969 com a chancela da então Editora Íbis.

A história gira em redor de um velho costume gaulês: "Quando dois chefes gauleses estão em disputa, o vencedor de um combate singular entre os seus chefes torna-se senhor da aldeia vencida.". Está dado o mote para mais uma tentativa romana de conquista da irredutível aldeia gaulesa. 
 
Ficha técnica:
Astérix - O Combate dos Chefes (Edição limitada com 16 páginas exclusivas)
De René Goscinny e Albert Uderzo
Capa dura, formato 227x296, cores, 64 páginas.
ISBN: 9789892364933
PVP: € 11,50
Editor EDIÇÕES ASA
 

13 abril, 2025

Os Três Jokers pelo olhar de Francisco Lyon

Batman – Três Jokers

 A Piada Final?



Se há coisa que gosto nas minhas leituras é ser apanhado desprevenido, ser levado à quinta essência, não acreditar no que estou a ler ou a ver (no caso da BD). Pois foi exactamente isso que aconteceu quando li os três volumes que compunham Batman – Três Jokers na sua versão original da DC Comics de 2020. E depois, não contente, acabei por adquirir também a versão em capa dura.

A história decorre no universo de Batman e tem seis protagonistas. Seis! Pode ser lida individualmente, mas aqueles que acompanham o Cavaleiro das Trevas tirarão dela um superior proveito.

Antes de Três Jokers

Apenas antecedido pelo Super-Homem, Batman sucedeu-o após 13 meses. Os dois iniciaram a época dos super-heróis da indústria de banda desenhada norte-americana. Batman apareceu pela primeira vez em Maio de 1939 no número 27 da Detective Comics. Mas ao contrário do Super-Homem, o Homem-Morcego teve, desde logo, uma galeria de vilões que se tornaria icónica. Menos de um ano depois, aparecia o Joker, em Abril de 1940, no Batman número 1, onde é dada a conhecer a origem do Batman e a Mulher-Gato faz a sua primeira aparição.

A criação de Joker está envolta em controvérsia. Cada um dos seus criadores conta uma versão diferente. O certo é que, envolvidos estiveram três homens – Bill Finger, o argumentista, Bob Kane, o desenhador, e Jerry Robinson, o outro desenhador.

Independentemente de se dar mais crédito a uns ou a outros, o certo é que o Joker é um híbrido de influências. Robinson produziu um desenho de um joker de baralho de cartas; Finger providenciou inspiração na forma de um rosto de palhaço de Coney Island e, fulcral, uma fotografia do actor Conrad Veidt a representar o desfigurado e sempre a sorrir protagonista do filme de terror de 1928 The Man Who Laughs.

 


Tanto Robinson como Kane (que durante décadas recebeu os créditos de ter sido o único criador de Joker) desenharam o personagem no papel, enquanto Robinson e Finger desenvolveram o conceito de Joker como o némesis de Batman. O resultado final foi um vilão bem diferente dos gangsters e cientistas loucos que o Batman enfrentava na época. Um vilão completamente desprovido de moral, assassino sanguinário e implacável, um louco incontrolável, como deixa antever o primeiro balão que lhe é dedicado na revista número 1 de Batman.

Mas só muitos anos depois, na Detective Comics número 168 de Fevereiro de 1951, Bill Finger criou a mais frequentemente citada história de origem de Joker. Este começou por ser Red Hood, um vilão encapuçado que caiu num tanque de ácido quando fugia do Batman. Quando emergiu, o seu cabelo estava verde, a sua pele branca como a cal e os músculos do rosto tinham-se contraído de tal modo que a sua boca parecia ter um sorriso permanente. Foi precisamente nesta história de origem que Alan Moore e Brian Bolland se basearam para criar muitos anos mais tarde a sua novela gráfica seminal A Piada Mortal que, por sua vez, é essencial para Três Jokers.

Entretanto, dos anos 40 até ao começo dos 70 do século XX, a figura do Joker (e também a do Batman) foi suavizada, em parte pelo castrador código moral (“Comics Code”) que presidia à criação de qualquer comic. Só em 1973, no Batman n.º 251, pelas mãos do argumentista Dennis O’Neil e do artista Neal Adams, é que o Joker volta a matar e fica livre para a carnificina.

Mas é na segunda metade da década de 1980 que o Joker ganha um protagonismo e um negrume inesperados. Primeiro, com o trabalho de Frank Miller na sua obra de 1986 O Regresso do Cavaleiro das Trevas, que não só definiu um género como se estendeu a outros heróis da DC e mesmo às de outras editoras. Aqui, estamos num futuro distópico no qual, tanto Joker como Batman regressam da “reforma” mais perigosos que nunca. O Joker é agora um assassino em massa que parte o próprio pescoço de modo a incriminar o Batman.

Segundo, com a obra de Alan Moore (argumento) e Brian Bolland (desenho), editada em 1988 com o título Piada Mortal. Desta feita, o enfase vai para a relação quase simbiótica entre o herói e o vilão. Moore reintroduz a história de origem do “Red Hood” e reimagina o homem que acabaria por ser o Joker como um comediante sem sucesso obrigado a entrar no mundo do crime de modo a poder sustentar a sua mulher grávida. Num dos seus piores actos de violência, o psicopata deixa paraplégica a filha do Comissário Gordon, Barbara, cujo alter ego era a Batgirl.

Terceiro e último, com a história A Death in the Family, publicada na revista Batman do n.º 426 ao 429 e com capa de Mike Mignola, o criador de Hellboy. Aqui, Jim Starlin (argumentista) e Jim Aparo (desenhador), levam o Joker ainda mais longe. O palhaço do crime espanca brutalmente Jason Todd (segundo Robin) com um pé de cabra, acabando por o matar numa explosão, sendo que foram os leitores a decidir esta morte por voto telefónico.

De 1988 a 2025, é este o Joker que temos – um assassino sem escrúpulos, capaz das maiores atrocidades, um psicopata inteligente, narcísico, para quem parece só existir outra pessoa no mundo – Batman.

Mas, apesar de vários autores se terem dedicado à sua origem, o seu verdadeiro passado continua envolto em mistério, pois é Joker que relata a sua história. Não sabemos se fala a verdade ou se mente. Por isso, qual é o seu verdadeiro nome? De onde vem? E qual é o seu passado?

 

E é neste momento que nos vemos chegados a Batman – Três Jokers, de Geoff Johns (argumento) e Jason Fabok (desenho), acabado de ser editado em Portugal pela editora Devir num único volume de capa dura.

Agora sim…!

Vamos à história!

 

A noite vai longa. Para além do som de asas de morcegos, o silêncio impera na caverna. A calma é interrompida pelo barulho de passos descompassados que descem a longa escadaria. Batman regressa ao complexo de cavernas que se espalha debaixo da sua mansão. Mas algo não está bem. Apoiado em Alfred, o seu fiel mordomo, cambaleia. O ferimento no flanco é grave; o sangue corre abundantemente. Mas Alfred também lá está para isso, para tratar dos ferimentos do seu patrão e amigo Bruce Wayne. As cicatrizes que este ostenta no corpo musculado são numerosas e cada uma conta uma história: um ataque de Bane, uma queimadura pelo Enigma, cortes pela Mulher-Gato, uma dentada do Killer-Croc, trespassado pelo Espantalho, um tiro do Joker, ácido do Joker, corte do Joker, Joker, Joker, Joker…

 


A gargalhada sinistra do Joker ecoa na mente de Bruce que, ao mesmo tempo, recorda a noite fatídica em que os seus pais foram assassinados a sangue frio defronte o seu olhar de criança. Trazido à realidade pela voz de Alfred, Batman não tem tempo para se recompor. A sua atenção é captada pela notícia do dia: os últimos membros da família de criminosos Moxon foram brutalmente executados num restaurante da baixa de Gotham. Uma testemunha identificou o assassino como sendo o Joker que, aparentemente, continua a sua guerra iniciada há décadas contra o crime organizado. A Batman, resta-lhe voltar a colocar o capuz…

 

A ideia da existência de três jokers antecede em muito este álbum e remonta ao n.º 50 da Justice League publicado em 2016. E foi igualmente obra de Geoff Johns e Jason Fabok que explicam brevemente ser essa razão pela qual foi tão difícil a Batman descobrir a verdadeira identidade do Joker.

 

Antes de mais, há que dizer que Batman – Três Jokers foi publicado originalmente na chancela DC Black Label. E isto é sinónimo de histórias com temas mais adultos e complexos e com um nível de violência muito superior à dos comics “regulares”.

 

Johns parece fixar-se na ideia de trindade: 3 Jokers (o Palhaço, o Criminoso e o Comediante), 3 heróis (Batman, Batgirl e Red Hood), 3 influências (o Joker original [criado por 3 artistas], o Joker de A Death in the Family e o Joker de Piada Mortal).

 

A ideia de existirem três Jokers pode ser boa, mas sem uma capacidade narrativa a toda a prova, não passaria de mais uma boa ideia numa história de continuidade que não deixaria marca. Ora, não é este o caso! As capacidades narrativas de Geoff Johns são superiores, meticulosas e extremamente criativas. Atente-se na sequência inicial. Ao longo de 15 páginas, quase sem palavras, Johns apresenta-nos o quotidiano de Batman através das suas cicatrizes. Cada uma corresponde ao ataque de um vilão, sendo que a narrativa vai intercalando cada vinheta de cicatriz com uma vinheta de vilão, dando à história um começo alucinante. Mas a maior cicatriz, envolta no riso macabro do Joker, é a que advém do assassinato dos pais de Bruce Wayne. Logo em seguida, Johns coloca o leitor no chuveiro com Barbara Gordon – a sua cicatriz na coluna remete-a para o ataque gratuito que lhe foi infligido pelo Joker. Por fim, Jason Todd, o Red Hood, luta com os capangas do Joker ao mesmo tempo que recorda o ataque mortal de que foi alvo pelo palhaço do crime. É uma cena longa e alucinante que intercala as vinhetas coloridas do presente com as do passado a preto e branco.

 

Na verdade, Johns apresenta o mote de toda a história nesta sequência inicial. De forma mais profunda, tudo gira à volta de cicatrizes, dos traumas que elas causaram e da maneira como cada um consegue conviver ou ultrapassar esses traumas.

 

A história é um regresso às origens, quando Batman encontrou o Joker pela primeira vez. Mas, de certo modo, é um regresso a Piada Mortal e A Death in the Family. Barbara e Jason passaram por tanto quanto Bruce. Resta saber como é que cada um lida com as feridas do passado e qual o processo de cura. As experiências traumáticas mudam uma pessoa, por vezes para melhor, por vezes para pior. A cura pode ser a certa ou a errada. E é disto, em última análise, que se trata em Três Jokers – a cura, certa ou errada, e a sobrevivência ao trauma.

 

 

De certo modo, Geoff Johns escreve aqui uma história que, não deixando de ser de “super-heróis”, agradará a todos os leitores que vêem em personagens complexos e em temas do foro psicológico uma mais valia para adensar protagonistas. E, de facto, as inúmeras camadas de Batman, Batgirl, Red Hood e dos três Jokers é o que dá a esta história uma das suas duas maiores riquezas, sendo a outra a criação de novos cânones para o universo de Batman.

 

Neste momento, tenho de prosseguir com cuidado pois estes cânones, a serem revelados, são daqueles spoilers indesculpáveis que podem mesmo estragar algum do prazer de ler Batman – Três Jokers. Apesar disso, posso dizer-vos que a história de Joe Chill (o assassino dos pais de Bruce Wayne) e o seu destino são revelados de maneira surpreendente, sendo que as implicações no carácter do Batman são bem profundas. Este, ao final de 86 anos de aventuras, chega mesmo a mudar a perspectiva que tinha do assassino dos seus pais.

 

Outro cânone é o da postura de Barbara Gordon, aka Batgirl, em relação ao trauma causado pelo Joker, mas também a complexidade da sua relação com Batman e, sobretudo, com Jason Todd.

 

Quanto a este, que desde que ressurgiu no universo de Batman tem sido sempre uma alma atormentada e negra, está agora ao nível do próprio Joker, atribuindo lógica aos comportamentos mais amorais.

 

Na verdade, Barbara Gordon e Jason Todd são os extremos opostos neste livro. Quanto aos terríveis traumas causados pelo Joker a ambos, Barbara curou-se bem e ficou mais forte; Jason curou-se mal e é agora um ser ultraviolento.

 

Mas o cânone mais forte e mais original, quanto a mim, é aquele que cristaliza a origem do Joker – homem e monstro – apresentada em Piada Mortal. A obra de Alan Moore e Brian Bolland tem uma profunda influência em Três Jokers. Partindo dela, Johns acrescenta-lhe pormenores, dá-lhe uma reviravolta inesperada e crava a surpresa no espírito do leitor, sem desvirtuar o trabalho de Moore. A partir daqui, se alguém quiser falar da origem do vilão, não o poderá fazer sem ter em conta tanto a obra de Moore como a de Johns.

 

O escritor oferece-nos uma narrativa aparentemente simples, mas perfeitamente calibrada, que tem tempo de mergulhar na loucura e “pancadas” dos personagens ao mesmo tempo que vai destilando várias surpresas de monta.

 

Em muitos aspectos, Batman – Três Jokers é uma homenagem a Piada Mortal. E, no entanto, quando Alan Moore fala de Piada Mortal, ele desconsidera a sua própria obra dizendo que não passa de uma mera história do Batman. É muito séria, muito violenta, mas sem qualquer ligação ao mundo real. Como Moore disse numa entrevista em 2003, “Batman e o Joker não são iguais a nenhum ser humano que alguma vez tenha existido. Por isso, não há qualquer informação humana a ser transmitida.”

 

Esta declaração do autor não é da minha concordância, pensando o mesmo em relação à obra de Johns e Fabok. Três Jokers não é apenas uma história de super-heróis. É certo que tem muita luta e violência, mas a sua cadência não é propriamente a de uma série. É um ensaio acerca da natureza do Joker e da dor que ele infligiu a vários personagens do universo de Batman. Em Piada Mortal, os protagonistas ainda não sentiram a dor provocada pelo Palhaço do Crime; em Três Jokers, essa dor faz já parte das suas vidas.

 

 

Com tanto dito, poderá pensar-se que a história de Johns se foca maioritariamente nos três Jokers, em Barbara e em Jason. E muitos leitores acharão mesmo que Batman é quase personagem secundária. Mas tal não é verdade. Batman – Três Jokers, como já se disse, é acerca de trauma e impotência – a frustrante inabilidade de se conseguir chegar a alguém traumatizado. E Johns consegue retratar um Batman no seu melhor e no seu pior, demonstrando porque a relação entre Barbara, Jason e ele próprio é tão carregada e tensa. Tal como em Piada Mortal, Batman chega mais facilmente ao Joker do que aos seus aliados. A obra de Moore e Bolland termina com o Batman e o Joker a comungarem da mesma piada, rindo-se à gargalhada. A obra de Johns e Fabok termina com Batman a contemplar, por uma janela, a vida que o Joker poderia ter tido.

 

A preocupação do herói para com o vilão, e a empatia que parece nutrir por ele, são mais fortes que as que sente pela sua “família”. E o mesmo se passa com o Joker (ou Jokers) em relação a Batman. Por alguma razão Três Jokers gira à volta da necessidade do Comediante, do Palhaço e do Criminoso criarem um quarto Joker, um que, de algum modo, tenha um forte elo sentimental com Batman, um que este nunca possa esquecer ou ignorar. Um que, sentimentalmente, seja parte indelével da sua vida.

 

 

As vitórias de Batgirl, do derradeiro Joker e até de Red Hood são pírricas. É o nome de Batman sob os holofotes, é Batman que salva o dia, é Batman que encontra a paz e Batman que providência a grande visão final sobre o Joker. Mas tudo às custas daqueles que o rodeiam.

 

Ao longo de mais de oito décadas, muitos foram os autores que deixaram a sua marca na história do Batman. E em cada momento, muitos foram aqueles que reagiram à novidade de cada avanço dramático na narrativa contínua do herói e dos seus vilões. O facto é que o tempo é um terrível e imperturbável depurador que só permite a sobrevivência daquilo que interessa, deixando o resto na sombra ou como uma mera nota de rodapé. Vejo a Piada Mortal como obra que vence Cronos e Batman – Três Jokers ligada para sempre à primeira, ainda que com méritos próprios. Não me interessa se a segunda canibaliza os elementos essenciais da primeira, desde que o faça com originalidade e acrescente algo de importante ao mito do Homem Morcego, sem o desvirtuar. E é isso que acontece na história e narrativa de Geoff Johns que entra em grande na Black Label da DC.

 


Para além da história, Batman – Três Jokers tem um dos seus grandes trunfos na arte de Jason Fabok e nas cores de Brad Anderson.

 

E a homenagem feita por Johns à história de Alan Moore estende-se ao desenho de Brian Bolland através da arte de Fabok. Este mima a grelha de 9 vinhetas de Bolland, embora a utilize mais do que Bolland o fez. Utiliza o preto e branco e os meios tons para nos levar ao passado e muitas das poses dos personagens bem como a composição de algumas vinhetas remetem-nos directamente para a Piada Mortal e para A Death in the Family.

 




A arte de Fabok denota uma maturação e perfeição raras. Para além de não existirem perspectivas ou ângulos errados, desproporções anatómicas ou um lápis preguiçoso nas cenas com muitos figurantes, a sua arte é muito detalhada, precisa e cinematográfica. Não raras as vezes, o leitor tem a impressão de estar a ver um filme com frames salteados, num estilo realista.

 


A extrema expressividade dos seus rostos consegue contar parte da história. Uma expressividade que é posta à prova nos seus grandes planos, e com sucesso. Apesar da máscara, o Batman irradia emoções, mesmo que contidas. Através dos seus rostos, sente-se a tensão que é transversal a toda a narrativa.

 

E depois há os Jokers. Três! Diferentes, mas semelhantes. Visualmente, são as pequenas nuances que os denunciam. E a extrema loucura, a alienação, estão sempre presentes em cada ruga de expressão dos seus rostos. Mesmo aquele que Batman designa como o “Criminoso”, o que parece ser o líder, o que só permite que o sorriso mortal surja nos momentos mais caóticos, mesmo esse tem a loucura no olhar.

 



Também nas cenas em que não há propriamente acção, a arte de Fabok é posta à prova. Mas, também aqui, o leitor não se sente defraudado. A arte sublime expressa em cada vinheta impele-nos a continuar, sem parar, embora, invariavelmente, o leitor abrande a leitura de modo a poder apreciar a delícia que são cada “quadradinho”. Seja pela expressividade já referida, seja pelas texturas das indumentárias, pelos ângulos, pelos jogos de luz e sombra, pela mise em scène, tudo contribui para o prazer visual do leitor.

 


 

As cenas de luta são verdadeiros bailados com coreografias complexas. Não são raras as vezes que estas cenas têm múltiplos intervenientes, quer do lado dos heróis quer do lado dos vilões. Cada vinheta é, por isso, uma multitude de acções; cada interveniente parece ter uma agenda própria, ainda que cada grupo actue em função do seu lado. Há que, mais uma vez, deter-nos em cada cena de modo a conseguirmos acompanhar as batalhas mais intrincadas.

 

Os dois exemplos que se seguem são tão bons como outros quaisquer no livro. Mas o melhor exemplo, quanto a mim, é o palidamente representado pela terceira imagem. Pálido exemplo porque é uma prancha de um conjunto de 10 no qual se desenrola a batalha final entre os heróis e os Jokers. A cena é construída num crescendo, em tons frios, culminando no absoluto caos que parece ir consumir pelas chamas todos os intervenientes. O certo é que, deste derradeiro confronto ninguém sai ileso, nem sequer o leitor!

A maneira de contar a história através de imagens, o planeamento ou arte sequêncial é perfeitamente dominada por Fabok. Aliás, falo com grande mestria, arranjando tempo, no meio de uma acção extrema, de dar ao leitor mais informado não só a complexidade de sentimentos dos personagens como também aquela informação acessória que só um fã compreenderá.

Atentemos na prancha seguinte. O Joker, preso a uma cadeira, consegue, ainda assim, levar Jason Todd perto da loucura. Este aponta-lhe a arma, hesitante e atónito. Recorda o seu trauma – o momento em que o Joker o espancou quase até à morte (aqui, a vinheta homenageia a arte de Mike Mignola para a primeira capa de A Death in the Family). Jason, trémulo, começa a premir o gatilho. Barbara, numa tentativa de evitar o pior, corre para ele. O Joker ri-se descontroladamente e esperneia, preso à cadeira. Barbara lança um batarangue contra Jason. A gargalhada louca do Joker enche o ar. O batarangue ricocheteia na arma de Jason. Este, usa as duas mãos na pistola de modo a ganhar firmeza. A gargalhada do Joker domina a cena. Jason prime o gatilho e o Joker gargalha até ao fim…

 

Para além de tudo o que já se disse acerca da arte de Fabok, não nos podemos esquecer que estamos perante uma história do Batman. E, por isso, convém que aqueles elementos que a definem em permanência estejam presentes. Mais uma vez, Fabok trata estes elementos não só com grande cuidado, mas também com criatividade.

 

Assim, não pode faltar a batcaverna, o “cinto de utilidades”, o batmobile ou uma cidade de Gotham sombria, moderadamente gótica, assolada pela chuva quase constante que ajuda a dar-lhe o negrume que a corrói.

 

A tudo isto, há que acrescentar a paleta de cores de Brad Anderson que contribui em muito para o ambiente tenso, sombrio e misterioso da narrativa.

 


Em suma, Batman – Três Jokers não é apenas mais uma história do Cavaleiro das Trevas. Não é apenas mais um livro para os amantes do Homem Morcego. Aparentemente, não obedece à continuidade dos comics mensais. Obedece sim a uma continuidade à Piada Mortal e A Death in the Family. Mas o leitor nem precisa de ler estes dois de modo a compreender a narrativa, embora ganhe em fazê-lo.

 

Desde 1940, a figura do Joker tem fascinado sempre o público. Por alguma razão, há um filme que lhe é dedicado inteiramente e onde nem sequer aparece o Batman. Aparentemente, sabemos quase tudo acerca do assassino louco, mas, na realidade, sabemos quase nada em relação à sua verdadeira identidade. E se o Joker fosse três pessoas diferentes? Explicaria isso a dificuldade de se conhecer quem ele é de verdade? Esta é a premissa um pouco louca da história criada por Geoff Johns. Mas tem lógica! O Joker é talvez o ser mais múltiplo que existe. Não é um esquizofrénico. É um psicopata-sociopata louco que vive num mundo que o faz rir à gargalhada. Sem escrúpulos, amoral, para quem só existem duas razões para viver: matar com um punchline e Batman. 


Em Três Jokers, mergulhamos na psique do palhaço do crime (não importa se ele é um ou três), mas também na do Batman, da Batgirl e de Red Hood. Todos os momentos dramáticos da narrativa que envolvem a “família” de Batman traumatizada evoluem para uma triste percepção social muito em voga nos tempos que correm: todas as críticas e todos os defeitos são consciencializados e transformados em predicados, em benefícios. Uma situação bem presente nas revoadas de concorrentes participantes no “Big Brother” que se orgulham, acima de tudo, dos seus defeitos. Felizmente, em Batman – Três Jokers, não é o orgulho estúpido que faz avançar a acção. Os sentimentos são mais profundos, e giram à volta da postura radical do Joker, transformado no velho centrismo americano no qual se afirma “o mundo sou eu!”. Lembra-vos algo, caro leitor?

 

Batman – Três Jokers tem tantas camadas que seria possível fazer vários artigos diferentes acerca da história escrita e da história desenhada.


As duas narrativas e o desenho só por si, tentam explicar ao leitor a origem e a vida do Joker que há tantas décadas estão envoltas em mistério. Bill Finger levantou o véu ligeiramente em 1951. Alan Moore e Brian Bolland chocaram os leitores em 1988. Coube agora a Geoff Johns e Jason Fabok deixarem a sua impressão digital nesta saga.

 

No fim da história, parece que o status quo entre Batman e Joker é restabelecido. E a Bat-família parece continuar longe de descobrir a sua verdadeira identidade. Longe das longas noites de vigília à cidade de Gotham, longe das lutas e dos seus mais próximos, vemos Batman a confidenciar a Alfred o seu mais bem guardado segredo – ele sabe qual a verdadeira identidade do Joker, do que subsiste, do que manipulou os outros Jokers ao longo de tantos anos.

 

Piada Mortal é intencionalmente ambígua em relação à história do passado do Joker. Ficamos sem saber se é real ou uma invenção da imaginação tresloucada do vilão. Mas em Três Jokers essa ambiguidade esbate-se e é sugerido que a história é real, ainda que contenha uma reviravolta final.

 

Contudo, não ficamos a saber o verdadeiro nome do Joker. Não sabemos as origens dos outros dois Jokers. E não sabemos qual dos três Jokers era o original. De muitas maneiras, o Joker mantem-se tão misterioso como era no passado, embora agora tenha uma origem mais tangível.

 

O final de Batman – Três Jokers está bem no espírito do próprio Joker. É maleável e ambíguo o suficiente para que se possa dizer “o mistério continua!”.

 

O facto de Batman esconder há tantos anos o segredo da identidade do Joker é uma piada maior do que qualquer outra que o Joker pudesse criar.

 

A piada final!

 

Sem dúvida, um livro a não perder!

 

EXTRAS

 

Deixo-vos agora com alguns extras. Não que sejam particularmente importantes, mas talvez acrescentem, pelas razões mais diversas, algo à leitura de Batman – Três Jokers e à percepção que o leitor possa ter de Jason Fabok.

 

Na imagem que se segue, temos uma homenagem da Fabok ao Batman de Jim Lee na história Hush, mimando a capa de Lee para o primeiro capítulo, também aqui reproduzida.

 



Só para aqueles que gostam de descobrir erros na arte dos autores, vejam como Fabok se esqueceu de sombrear e iluminar correctamente a carta que está sob a sombra de Jason Todd.

 


A capa wraparound (que vai da capa à contracapa) que Fabok e Anderson criaram para Detective Comics n.º 1000.

 

 

Rook: Exodus, série em curso criada por Geoff Johns, Jason Fabok e Brad Anderson, o trio de Batman – Três Jokers, para a imprint da Image, Ghost Machine. Ficção Científica distópica. Aconselho vivamente.

 

 

Por Francisco Lyon de Castro