Batman – Três
Jokers
A Piada
Final?
Se há coisa que gosto nas minhas leituras é ser
apanhado desprevenido, ser levado à quinta essência, não acreditar no que estou
a ler ou a ver (no caso da BD). Pois foi exactamente isso que aconteceu quando
li os três volumes que compunham Batman –
Três Jokers na sua versão original da
DC Comics de 2020. E depois, não contente, acabei por adquirir também a versão
em capa dura.
A história decorre no universo de Batman e tem seis
protagonistas. Seis! Pode ser lida individualmente, mas aqueles que acompanham
o Cavaleiro das Trevas tirarão dela um superior proveito.
Antes de Três Jokers
Apenas antecedido pelo Super-Homem, Batman sucedeu-o
após 13 meses. Os dois iniciaram a época dos super-heróis da indústria de banda desenhada norte-americana. Batman apareceu pela primeira vez em Maio de 1939 no
número 27 da Detective Comics. Mas ao contrário do Super-Homem, o Homem-Morcego teve, desde logo, uma galeria de
vilões que se tornaria icónica. Menos de um ano depois, aparecia o Joker, em Abril de 1940, no Batman número 1,
onde é dada a conhecer a origem do Batman e a Mulher-Gato faz a sua primeira aparição.
A criação de Joker está envolta em controvérsia. Cada
um dos seus criadores conta uma versão diferente. O certo é que, envolvidos estiveram três homens – Bill Finger, o argumentista, Bob Kane, o desenhador, e
Jerry Robinson, o outro desenhador.
Independentemente de se dar mais crédito a uns ou a
outros, o certo é que o Joker é um híbrido de influências. Robinson produziu um desenho de um joker de baralho de cartas; Finger providenciou inspiração na
forma de um rosto de palhaço de Coney Island e, fulcral, uma fotografia do actor Conrad Veidt a representar o desfigurado e sempre a sorrir protagonista
do filme de terror de 1928 The Man Who
Laughs.
Tanto Robinson como Kane (que durante décadas
recebeu os créditos de ter sido o único criador de Joker) desenharam o personagem no papel, enquanto Robinson e Finger desenvolveram o conceito de
Joker como o némesis de Batman. O resultado final foi um vilão bem diferente dos gangsters e cientistas loucos que o Batman enfrentava na época. Um vilão
completamente desprovido de moral, assassino sanguinário e implacável, um louco incontrolável, como deixa antever o primeiro balão que lhe é dedicado na
revista número 1 de Batman.

Mas só muitos anos depois, na Detective Comics número 168 de Fevereiro de 1951, Bill Finger criou
a mais frequentemente citada história de origem de Joker. Este começou por ser
Red Hood, um vilão encapuçado que caiu num tanque de ácido quando fugia do
Batman. Quando emergiu, o seu cabelo estava verde, a sua pele branca como a cal
e os músculos do rosto tinham-se contraído de tal modo que a sua boca parecia
ter um sorriso permanente. Foi precisamente nesta história de origem que Alan
Moore e Brian Bolland se basearam para criar muitos anos mais tarde a sua
novela gráfica seminal A Piada Mortal
que, por sua vez, é essencial para Três
Jokers.
Entretanto, dos anos 40 até ao começo dos 70 do século
XX, a figura do Joker (e também a do Batman) foi suavizada, em parte pelo
castrador código moral (“Comics Code”) que presidia à criação de qualquer
comic. Só em 1973, no Batman n.º 251,
pelas mãos do argumentista Dennis O’Neil e do artista Neal Adams, é que o Joker
volta a matar e fica livre para a carnificina.
Mas é na segunda metade da década de 1980 que o Joker
ganha um protagonismo e um negrume inesperados. Primeiro, com o trabalho de
Frank Miller na sua obra de 1986 O
Regresso do Cavaleiro das Trevas, que não só definiu um género como se
estendeu a outros heróis da DC e mesmo às de outras editoras. Aqui, estamos num
futuro distópico no qual, tanto Joker como Batman regressam da “reforma” mais
perigosos que nunca. O Joker é agora um assassino em massa que parte o próprio
pescoço de modo a incriminar o Batman.
Segundo, com a obra de Alan Moore (argumento) e Brian
Bolland (desenho), editada em 1988 com o título Piada Mortal. Desta feita, o enfase vai para a relação quase
simbiótica entre o herói e o vilão. Moore reintroduz a história de origem do
“Red Hood” e reimagina o homem que acabaria por ser o Joker como um comediante
sem sucesso obrigado a entrar no mundo do crime de modo a poder sustentar a sua
mulher grávida. Num dos seus piores actos de violência, o psicopata deixa
paraplégica a filha do Comissário Gordon, Barbara, cujo alter ego era a
Batgirl.
Terceiro e último, com a história A Death in the Family, publicada na revista Batman do n.º 426 ao 429 e com capa de Mike Mignola, o criador de
Hellboy. Aqui, Jim Starlin (argumentista) e Jim Aparo (desenhador), levam o
Joker ainda mais longe. O palhaço do crime espanca brutalmente Jason Todd
(segundo Robin) com um pé de cabra, acabando por o matar numa explosão, sendo
que foram os leitores a decidir esta morte por voto telefónico.
De 1988 a 2025, é este o Joker que temos – um
assassino sem escrúpulos, capaz das maiores atrocidades, um psicopata
inteligente, narcísico, para quem parece só existir outra pessoa no mundo –
Batman.
Mas, apesar de vários autores se terem dedicado à sua
origem, o seu verdadeiro passado continua envolto em mistério, pois é Joker que
relata a sua história. Não sabemos se fala a verdade ou se mente. Por isso,
qual é o seu verdadeiro nome? De onde vem? E qual é o seu passado?
E é neste momento que nos vemos chegados a Batman – Três Jokers, de Geoff Johns
(argumento) e Jason Fabok (desenho), acabado de ser editado em Portugal pela
editora Devir num único volume de
capa dura.
Agora sim…!
Vamos à história!
A noite vai longa. Para além do som
de asas de morcegos, o silêncio impera na caverna. A calma é interrompida pelo
barulho de passos descompassados que descem a longa escadaria. Batman regressa
ao complexo de cavernas que se espalha debaixo da sua mansão. Mas algo não está
bem. Apoiado em Alfred, o seu fiel mordomo, cambaleia. O ferimento no flanco é
grave; o sangue corre abundantemente. Mas Alfred também lá está para isso, para
tratar dos ferimentos do seu patrão e amigo Bruce Wayne. As cicatrizes que este
ostenta no corpo musculado são numerosas e cada uma conta uma história: um
ataque de Bane, uma queimadura pelo Enigma, cortes pela Mulher-Gato, uma
dentada do Killer-Croc, trespassado pelo Espantalho, um tiro do Joker, ácido do
Joker, corte do Joker, Joker, Joker, Joker…

A gargalhada sinistra do Joker ecoa
na mente de Bruce que, ao mesmo tempo, recorda a noite fatídica em que os seus
pais foram assassinados a sangue frio defronte o seu olhar de criança. Trazido
à realidade pela voz de Alfred, Batman não tem tempo para se recompor. A sua
atenção é captada pela notícia do dia: os últimos membros da família de
criminosos Moxon foram brutalmente executados num restaurante da baixa de
Gotham. Uma testemunha identificou o assassino como sendo o Joker que,
aparentemente, continua a sua guerra iniciada há décadas contra o crime
organizado. A Batman, resta-lhe voltar a colocar o capuz…
A ideia da existência de três jokers
antecede em muito este álbum e remonta ao n.º 50 da Justice League
publicado em 2016. E foi igualmente obra de Geoff Johns e Jason Fabok que
explicam brevemente ser essa razão pela qual foi tão difícil a Batman descobrir
a verdadeira identidade do Joker.
Antes de mais, há que dizer que Batman
– Três Jokers foi publicado originalmente na chancela DC Black Label.
E isto é sinónimo de histórias com temas mais adultos e complexos e com um
nível de violência muito superior à dos comics “regulares”.
Johns parece fixar-se na ideia de
trindade: 3 Jokers (o Palhaço, o Criminoso e o Comediante), 3 heróis (Batman,
Batgirl e Red Hood), 3 influências (o Joker original [criado por 3 artistas], o
Joker de A Death in the Family e o Joker de Piada Mortal).
A ideia de existirem três Jokers pode
ser boa, mas sem uma capacidade narrativa a toda a prova, não passaria de mais
uma boa ideia numa história de continuidade que não deixaria marca. Ora, não é
este o caso! As capacidades narrativas de Geoff Johns são superiores,
meticulosas e extremamente criativas. Atente-se na sequência inicial. Ao longo
de 15 páginas, quase sem palavras, Johns apresenta-nos o quotidiano de Batman
através das suas cicatrizes. Cada uma corresponde ao ataque de um vilão, sendo
que a narrativa vai intercalando cada vinheta de cicatriz com uma vinheta de
vilão, dando à história um começo alucinante. Mas a maior cicatriz, envolta no
riso macabro do Joker, é a que advém do assassinato dos pais de Bruce Wayne.
Logo em seguida, Johns coloca o leitor no chuveiro com Barbara Gordon – a sua
cicatriz na coluna remete-a para o ataque gratuito que lhe foi infligido pelo
Joker. Por fim, Jason Todd, o Red Hood, luta com os capangas do Joker ao mesmo
tempo que recorda o ataque mortal de que foi alvo pelo palhaço do crime. É uma
cena longa e alucinante que intercala as vinhetas coloridas do presente com as
do passado a preto e branco.

Na verdade, Johns apresenta o mote de
toda a história nesta sequência inicial. De forma mais profunda, tudo gira à
volta de cicatrizes, dos traumas que elas causaram e da maneira como cada um
consegue conviver ou ultrapassar esses traumas.
A história é um regresso às origens,
quando Batman encontrou o Joker pela primeira vez. Mas, de certo modo, é um
regresso a Piada Mortal e A Death in the Family. Barbara e Jason
passaram por tanto quanto Bruce. Resta saber como é que cada um lida com as
feridas do passado e qual o processo de cura. As experiências traumáticas mudam
uma pessoa, por vezes para melhor, por vezes para pior. A cura pode ser a certa
ou a errada. E é disto, em última análise, que se trata em Três Jokers –
a cura, certa ou errada, e a sobrevivência ao trauma.
De certo modo, Geoff Johns escreve
aqui uma história que, não deixando de ser de “super-heróis”, agradará a todos
os leitores que vêem em personagens complexos e em temas do foro psicológico
uma mais valia para adensar protagonistas. E, de facto, as inúmeras camadas de
Batman, Batgirl, Red Hood e dos três Jokers é o que dá a esta história uma das suas
duas maiores riquezas, sendo a outra a criação de novos cânones para o universo
de Batman.
Neste momento, tenho de prosseguir
com cuidado pois estes cânones, a serem revelados, são daqueles spoilers
indesculpáveis que podem mesmo estragar algum do prazer de ler Batman – Três
Jokers. Apesar disso, posso dizer-vos que a história de Joe Chill (o
assassino dos pais de Bruce Wayne) e o seu destino são revelados de maneira
surpreendente, sendo que as implicações no carácter do Batman são bem
profundas. Este, ao final de 86 anos de aventuras, chega mesmo a mudar a
perspectiva que tinha do assassino dos seus pais.
Outro cânone é o da postura de
Barbara Gordon, aka Batgirl, em relação ao trauma causado pelo Joker, mas
também a complexidade da sua relação com Batman e, sobretudo, com Jason Todd.
Quanto a este, que desde que
ressurgiu no universo de Batman tem sido sempre uma alma atormentada e negra,
está agora ao nível do próprio Joker, atribuindo lógica aos comportamentos mais
amorais.
Na verdade, Barbara Gordon e Jason
Todd são os extremos opostos neste livro. Quanto aos terríveis traumas causados
pelo Joker a ambos, Barbara curou-se bem e ficou mais forte; Jason curou-se mal
e é agora um ser ultraviolento.
Mas o cânone mais forte e mais
original, quanto a mim, é aquele que cristaliza a origem do Joker – homem e
monstro – apresentada em Piada Mortal. A obra de Alan Moore e Brian
Bolland tem uma profunda influência em Três Jokers. Partindo dela, Johns
acrescenta-lhe pormenores, dá-lhe uma reviravolta inesperada e crava a surpresa
no espírito do leitor, sem desvirtuar o trabalho de Moore. A partir daqui, se
alguém quiser falar da origem do vilão, não o poderá fazer sem ter em conta
tanto a obra de Moore como a de Johns.
O escritor oferece-nos uma narrativa
aparentemente simples, mas perfeitamente calibrada, que tem tempo de mergulhar
na loucura e “pancadas” dos personagens ao mesmo tempo que vai destilando
várias surpresas de monta.
Em muitos aspectos, Batman – Três
Jokers é uma homenagem a Piada Mortal. E, no entanto, quando Alan
Moore fala de Piada Mortal, ele desconsidera a sua própria obra dizendo
que não passa de uma mera história do Batman. É muito séria, muito violenta,
mas sem qualquer ligação ao mundo real. Como Moore disse numa entrevista em
2003, “Batman e o Joker não são iguais a nenhum ser humano que alguma vez tenha
existido. Por isso, não há qualquer informação humana a ser transmitida.”
Esta declaração do autor não é da
minha concordância, pensando o mesmo em relação à obra de Johns e Fabok. Três
Jokers não é apenas uma história de super-heróis. É certo que tem muita
luta e violência, mas a sua cadência não é propriamente a de uma série. É um
ensaio acerca da natureza do Joker e da dor que ele infligiu a vários
personagens do universo de Batman. Em Piada Mortal, os protagonistas ainda
não sentiram a dor provocada pelo Palhaço do Crime; em Três Jokers, essa
dor faz já parte das suas vidas.
Com tanto dito, poderá pensar-se que
a história de Johns se foca maioritariamente nos três Jokers, em Barbara e em
Jason. E muitos leitores acharão mesmo que Batman é quase personagem
secundária. Mas tal não é verdade. Batman – Três Jokers, como já se
disse, é acerca de trauma e impotência – a frustrante inabilidade de se
conseguir chegar a alguém traumatizado. E Johns consegue retratar um Batman no
seu melhor e no seu pior, demonstrando porque a relação entre Barbara, Jason e
ele próprio é tão carregada e tensa. Tal como em Piada Mortal, Batman
chega mais facilmente ao Joker do que aos seus aliados. A obra de Moore e
Bolland termina com o Batman e o Joker a comungarem da mesma piada, rindo-se à
gargalhada. A obra de Johns e Fabok termina com Batman a contemplar, por uma
janela, a vida que o Joker poderia ter tido.
A preocupação do herói para com o
vilão, e a empatia que parece nutrir por ele, são mais fortes que as que sente
pela sua “família”. E o mesmo se passa com o Joker (ou Jokers) em relação a
Batman. Por alguma razão Três Jokers gira à volta da necessidade do
Comediante, do Palhaço e do Criminoso criarem um quarto Joker, um que, de algum
modo, tenha um forte elo sentimental com Batman, um que este nunca possa
esquecer ou ignorar. Um que, sentimentalmente, seja parte indelével da sua
vida.
As vitórias de Batgirl, do derradeiro
Joker e até de Red Hood são pírricas. É o nome de Batman sob os holofotes, é
Batman que salva o dia, é Batman que encontra a paz e Batman que providência a
grande visão final sobre o Joker. Mas tudo às custas daqueles que o rodeiam.
Ao longo de mais de oito décadas,
muitos foram os autores que deixaram a sua marca na história do Batman. E em
cada momento, muitos foram aqueles que reagiram à novidade de cada avanço
dramático na narrativa contínua do herói e dos seus vilões. O facto é que o
tempo é um terrível e imperturbável depurador que só permite a sobrevivência daquilo
que interessa, deixando o resto na sombra ou como uma mera nota de rodapé. Vejo
a Piada Mortal como obra que vence Cronos e Batman – Três Jokers
ligada para sempre à primeira, ainda que com méritos próprios. Não me interessa
se a segunda canibaliza os elementos essenciais da primeira, desde que o faça
com originalidade e acrescente algo de importante ao mito do Homem Morcego, sem
o desvirtuar. E é isso que acontece na história e narrativa de Geoff Johns que
entra em grande na Black Label da DC.
Para além da história, Batman –
Três Jokers tem um dos seus grandes trunfos na arte de Jason Fabok e nas cores de Brad Anderson.
E a homenagem feita por Johns à
história de Alan Moore estende-se ao desenho de Brian Bolland através da arte
de Fabok. Este mima a grelha de 9 vinhetas de Bolland, embora a utilize mais do
que Bolland o fez. Utiliza o preto e branco e os meios tons para nos levar ao
passado e muitas das poses dos personagens bem como a composição de algumas
vinhetas remetem-nos directamente para a Piada Mortal e para A Death
in the Family.
A arte de Fabok denota uma maturação
e perfeição raras. Para além de não existirem perspectivas ou ângulos errados,
desproporções anatómicas ou um lápis preguiçoso nas cenas com muitos
figurantes, a sua arte é muito detalhada, precisa e cinematográfica. Não raras
as vezes, o leitor tem a impressão de estar a ver um filme com frames
salteados, num estilo realista.
A extrema expressividade dos seus
rostos consegue contar parte da história. Uma expressividade que é posta à
prova nos seus grandes planos, e com sucesso. Apesar da máscara, o Batman
irradia emoções, mesmo que contidas. Através dos seus rostos, sente-se a tensão
que é transversal a toda a narrativa.
E depois há os Jokers. Três!
Diferentes, mas semelhantes. Visualmente, são as pequenas nuances que os
denunciam. E a extrema loucura, a alienação, estão sempre presentes em cada
ruga de expressão dos seus rostos. Mesmo aquele que Batman designa como o
“Criminoso”, o que parece ser o líder, o que só permite que o sorriso mortal
surja nos momentos mais caóticos, mesmo esse tem a loucura no olhar.
Também nas cenas em que não há
propriamente acção, a arte de Fabok é posta à prova. Mas, também aqui, o leitor
não se sente defraudado. A arte sublime expressa em cada vinheta impele-nos a
continuar, sem parar, embora, invariavelmente, o leitor abrande a leitura de
modo a poder apreciar a delícia que são cada “quadradinho”. Seja pela
expressividade já referida, seja pelas texturas das indumentárias, pelos
ângulos, pelos jogos de luz e sombra, pela mise em scène, tudo contribui
para o prazer visual do leitor.
As cenas de luta são verdadeiros
bailados com coreografias complexas. Não são raras as vezes que estas cenas têm
múltiplos intervenientes, quer do lado dos heróis quer do lado dos vilões. Cada
vinheta é, por isso, uma multitude de acções; cada interveniente parece ter uma
agenda própria, ainda que cada grupo actue em função do seu lado. Há que, mais
uma vez, deter-nos em cada cena de modo a conseguirmos acompanhar as batalhas
mais intrincadas.
Os dois exemplos que se seguem são
tão bons como outros quaisquer no livro. Mas o melhor exemplo, quanto a mim, é
o palidamente representado pela terceira imagem. Pálido exemplo porque é uma
prancha de um conjunto de 10 no qual se desenrola a batalha final entre os
heróis e os Jokers. A cena é construída num crescendo, em tons frios,
culminando no absoluto caos que parece ir consumir pelas chamas todos os
intervenientes. O certo é que, deste derradeiro confronto ninguém sai ileso,
nem sequer o leitor!
A
maneira de contar a história através de imagens, o planeamento ou arte
sequêncial é perfeitamente dominada por Fabok. Aliás, falo com grande mestria,
arranjando tempo, no meio de uma acção extrema, de dar ao leitor mais informado
não só a complexidade de sentimentos dos personagens como também aquela
informação acessória que só um fã compreenderá.
Atentemos
na prancha seguinte. O Joker, preso a uma cadeira, consegue, ainda assim, levar
Jason Todd perto da loucura. Este aponta-lhe a arma, hesitante e atónito.
Recorda o seu trauma – o momento em que o Joker o espancou quase até à morte
(aqui, a vinheta homenageia a arte de Mike Mignola para a primeira capa de A Death in the Family). Jason, trémulo,
começa a premir o gatilho. Barbara, numa tentativa de evitar o pior, corre para
ele. O Joker ri-se descontroladamente e esperneia, preso à cadeira. Barbara lança
um batarangue contra Jason. A gargalhada louca do Joker enche o ar. O
batarangue ricocheteia na arma de Jason. Este, usa as duas mãos na pistola de
modo a ganhar firmeza. A gargalhada do Joker domina a cena. Jason prime o
gatilho e o Joker gargalha até ao fim…

Para além de tudo o que já se disse
acerca da arte de Fabok, não nos podemos esquecer que estamos perante uma
história do Batman. E, por isso, convém que aqueles elementos que a definem em
permanência estejam presentes. Mais uma vez, Fabok trata estes elementos não só
com grande cuidado, mas também com criatividade.
Assim, não pode faltar a batcaverna,
o “cinto de utilidades”, o batmobile ou uma cidade de Gotham sombria,
moderadamente gótica, assolada pela chuva quase constante que ajuda a dar-lhe o
negrume que a corrói.
A tudo isto, há que acrescentar a
paleta de cores de Brad Anderson que contribui em muito para o ambiente tenso,
sombrio e misterioso da narrativa.
Em suma, Batman – Três Jokers
não é apenas mais uma história do Cavaleiro das Trevas. Não é apenas mais um
livro para os amantes do Homem Morcego. Aparentemente, não obedece à
continuidade dos comics mensais. Obedece sim a uma continuidade à Piada
Mortal e A Death in the Family. Mas o leitor nem precisa de ler
estes dois de modo a compreender a narrativa, embora ganhe em fazê-lo.
Desde 1940, a figura do Joker tem
fascinado sempre o público. Por alguma razão, há um filme que lhe é dedicado
inteiramente e onde nem sequer aparece o Batman. Aparentemente, sabemos quase
tudo acerca do assassino louco, mas, na realidade, sabemos quase nada em
relação à sua verdadeira identidade. E se o Joker fosse três pessoas
diferentes? Explicaria isso a dificuldade de se conhecer quem ele é de verdade?
Esta é a premissa um pouco louca da história criada por Geoff Johns. Mas tem
lógica! O Joker é talvez o ser mais múltiplo que existe. Não é um
esquizofrénico. É um psicopata-sociopata louco que vive num mundo que o faz rir
à gargalhada. Sem escrúpulos, amoral, para quem só existem duas razões para
viver: matar com um punchline e Batman.
Em Três Jokers, mergulhamos na
psique do palhaço do crime (não importa se ele é um ou três), mas também na do
Batman, da Batgirl e de Red Hood. Todos os momentos dramáticos da narrativa que
envolvem a “família” de Batman traumatizada evoluem para uma triste percepção
social muito em voga nos tempos que correm: todas as críticas e todos os
defeitos são consciencializados e transformados em predicados, em benefícios.
Uma situação bem presente nas revoadas de concorrentes participantes no “Big
Brother” que se orgulham, acima de tudo, dos seus defeitos. Felizmente, em Batman
– Três Jokers, não é o orgulho estúpido que faz avançar a acção. Os
sentimentos são mais profundos, e giram à volta da postura radical do Joker,
transformado no velho centrismo americano no qual se afirma “o mundo sou eu!”.
Lembra-vos algo, caro leitor?
Batman – Três Jokers tem tantas camadas que seria
possível fazer vários artigos diferentes acerca da história escrita e da
história desenhada.
As duas narrativas e o desenho só por
si, tentam explicar ao leitor a origem e a vida do Joker que há tantas décadas
estão envoltas em mistério. Bill Finger levantou o véu ligeiramente em 1951.
Alan Moore e Brian Bolland chocaram os leitores em 1988. Coube agora a Geoff
Johns e Jason Fabok deixarem a sua impressão digital nesta saga.
No fim da história, parece que o status
quo entre Batman e Joker é restabelecido. E a Bat-família parece continuar
longe de descobrir a sua verdadeira identidade. Longe das longas noites de
vigília à cidade de Gotham, longe das lutas e dos seus mais próximos, vemos
Batman a confidenciar a Alfred o seu mais bem guardado segredo – ele sabe qual
a verdadeira identidade do Joker, do que subsiste, do que manipulou os outros
Jokers ao longo de tantos anos.
Piada Mortal é intencionalmente ambígua em relação à história
do passado do Joker. Ficamos sem saber se é real ou uma invenção da imaginação
tresloucada do vilão. Mas em Três Jokers essa ambiguidade esbate-se e é
sugerido que a história é real, ainda que contenha uma reviravolta final.
Contudo, não ficamos a saber o
verdadeiro nome do Joker. Não sabemos as origens dos outros dois Jokers. E não
sabemos qual dos três Jokers era o original. De muitas maneiras, o Joker
mantem-se tão misterioso como era no passado, embora agora tenha uma origem
mais tangível.
O final de Batman – Três Jokers
está bem no espírito do próprio Joker. É maleável e ambíguo o suficiente para
que se possa dizer “o mistério continua!”.
O facto de Batman esconder há tantos
anos o segredo da identidade do Joker é uma piada maior do que qualquer outra
que o Joker pudesse criar.
A piada final!
Sem dúvida,
um livro a não perder!
EXTRAS
Deixo-vos agora com alguns extras.
Não que sejam particularmente importantes, mas talvez acrescentem, pelas razões
mais diversas, algo à leitura de Batman – Três Jokers e à percepção que o
leitor possa ter de Jason Fabok.
Na imagem que se segue, temos uma
homenagem da Fabok ao Batman de Jim Lee na história Hush, mimando a capa
de Lee para o primeiro capítulo, também aqui reproduzida.
Só para aqueles que gostam de
descobrir erros na arte dos autores, vejam como Fabok se esqueceu de sombrear e
iluminar correctamente a carta que está sob a sombra de Jason Todd.
A capa wraparound (que vai da
capa à contracapa) que Fabok e Anderson criaram para Detective Comics
n.º 1000.
Rook: Exodus, série em curso criada por Geoff Johns, Jason
Fabok e Brad Anderson, o trio de Batman – Três Jokers, para a imprint da Image,
Ghost Machine. Ficção Científica distópica. Aconselho vivamente.
Por Francisco Lyon de Castro