Astérix – O Combate dos Chefes
Quando somos crianças, há coisas que nos marcam para a vida e que ultrapassam em muito aquela percepção que temos então da realidade. Mas, no fundo, é esse erro de percepção que enriquece a nossa capacidade de elaborar, fantasiar e até criar.
O complexo processo de adquirir, armazenar e recuperar (evocar) memórias resulta, tantas vezes, numa espécie de engano do hipocampo que as gere subjectivamente.
Ou seja, lembro-me bem de ter lido em criança a 7.ª aventura de Astérix, O Combate dos Chefes. Lembro-me bem, julgava eu! Para mim, o que me marcou neste álbum foi a quantidade de menires voadores que acabavam por cair em cima de Panoramix, o druida da aldeia gaulesa. Mas mais que isso, o que perdurava na minha memória era o efeito psicadélico e estroboscópico dos muitos personagens que beberam a poção mágica errada.
Ora, nem os menires a voarem, nem os personagens afectados pela poção foram tantos. A minha memória tinha dado demasiada importância a uma questão de pormenor. Contudo, foi isso que ajudou a criar a magia que ainda hoje sinto ao ler um álbum de Astérix. A magia de infância que ainda perdura.
Isto dito, é agora o momento de falar da reedição de O Combate dos Chefes que a Edições Asa acaba de lançar no mercado português numa edição de tiragem limitada, com 16 páginas de interessantes extras exclusivos e uma nova colorização em relação à edição original francesa e portuguesa.
É certo que a Asa terá publicado esta nova edição tendo em conta a série homónima que acaba de estrear na Netflix. Mas com isto permite a uma nova geração de leitores lerem uma das obras maiores de René Goscinny e Albert Uderzo. E permite também a uma geração não tão jovem reorganizar as memórias…
Até porque O Combate dos Chefes é muito mais que menires a voarem e rostos estroboscópicos. É de uma actualidade acutilante!
Vamos à história!
Estamos no ano 50 antes de Cristo. Nada consegue travar o avanço de Roma na sua sede de conquista. Bem! Nada não é bem assim! Perdida na imensidão da Gália, mais precisamente na região da Armórica, uma pequena aldeia faz frente às legiões de Júlio César. Mas isso é o habitual! Agora, as aldeias em redor aceitaram a pax romana; deixaram-se romanizar.
Mas na aldeia de Astérix, aquelas características que definem os gauleses mantêm-se inalteradas. Eles são “irredutíveis, corajosos, tinhosos, casmurros, comilões, zaragateiros e pândegos.” E a vida prossegue dentro da normalidade.
No campo fortificado de Babácomrum, o centurião Angélicus está farto de ver as suas patrulhas ridicularizadas pelos ataques de Astérix, Obélix e restantes companheiros. Para além disso, o seu insucesso em conquistar o último reduto livre de gauleses coloca a sua cabeça em risco perante a justiça inclemente de Roma.
Mas o seu ajudante-de-campo, Atrofiadecus, parece ter encontrado a solução num velho costume gaulês – o Combate dos Chefes – no qual o chefe de uma tribo desafia outro chefe para um combate singular. O vencedor torna-se chefe das duas tribos. Ora, Atrofiadecus conhece um chefe gaulês que está 100% do lado de Roma e que, para mais, é forte e destemido. E assim, os dois romanos vão falar com o chefe Amaisbêigualaix que aceita prontamente o desafio. Isto é, até saber que o chefe que deve desafiar é Matasétix, aquele que tem acesso à poção mágica do druida Panoramix. Só há uma solução! Capturar Panoramix, morto ou vivo, e assim acabar com a poção mágica.
É então enviada uma patrulha camuflada em missão de captura. Panoramix vai à floresta para colher os ingredientes necessários para fazer a poção mágica, pois já não há uma única gota na aldeia. E quando a patrulha está prestes a capturá-lo, Obélix defende-o lançando um menir pelos ares em direcção aos legionários romanos. Mas a trajectória não é das mais felizes e o menir acaba por esmagar o druida.
Panoramix sobrevive à violência do impacto, mas a sua cabeça fica afectada. Não só está amnésico como parece estar em constante delírio. É-lhe impossível produzir a poção mágica e os romanos sabem disso. Amaisbêigualaix lança então o desafio a Matasétix. O Combate dos Chefes pode começar…
O Combate dos Chefes é a 7.ª aventura de Astérix e foi publicada em 1966. O álbum marca a viragem da série para um verdadeiro sucesso de vendas. Enquanto os álbuns anteriores tiveram tiragens médias de 60 000 exemplares e o sexto, Astérix e Cleópatra, teve 100 000 exemplares, O Combate dos Chefes saltou para os 600 000 exemplares e transformou Astérix num verdadeiro fenómeno editorial.
Goscinny e Uderzo, até então, nunca tinham politizado Astérix e haviam evitado temas mais controversos. Mas em O Combate dos Chefes, embora sob o manto da romanização, abordam um assunto que fere a sociedade francesa de então e mesmo a de hoje – o colaboracionismo com os nazis durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Goscinny coloca Amaisbêigualaix a colaborar com os romanos com os quais parece sentir-se mais próximo do que com os seus compatriotas gauleses. Não se trata aqui apenas de assimilar os costumes romanos, mas de se pôr ao seu lado contra os seus conterrâneos. No caso de Amaisbêigualaix o assunto é ainda mais sério pois este nem sequer sofre de qualquer tipo de coacção para o fazer. Deixa-se aliciar pela perspectiva de conseguir a chefia de mais uma aldeia.
Claro está que este assunto é tratado à maneira de Goscinny e Uderzo, com muita bonomia e humor. Mas a crítica está lá.
De igual modo, o tema da romanização e da criação de uma sociedade galo-romana está presente em toda a obra. Não é inocentemente que Goscinny cria um gag de abertura em que o leitor pode reconhecer um arremedo de arquitectura romana numa aldeia gaulesa. Mais ainda, um dos intervenientes usa um penteado e roupa à romana. E a própria piada, brincando com a questão galo-romana/galo-grega, aborda a questão da língua. O latim, após a conquista romana, só de forma imperfeita suplantou os dialectos falados na Gália. A utilização da língua celta perdurou por mais 500 anos nas camadas populares. A minoria de famílias ricas aprendia o latim e o grego na escola.
Os acólitos de Amaisbêigualaix, tal como o próprio, envergam togas e apresentam-se de cabelo curto e cara rapada, à romana. E a arquitectura da aldeia de Sérum mostra, de forma extraordinária, a mescla de cultura rústica gaulesa com o refinamento romano. Bom exemplo disso é o gag visual da dómus de Amaisbêigualaix. O peristilo, rodeado por colunas e com uma fonte central, mostra a sofisticação romana, mas a que depois se junta o rústico da cobertura, omisso de telha.
Se utilizarmos a nomenclatura tão cara aos norte-americanos, O Combate dos Chefes faz parte da Idade de Ouro de Astérix e encontra Goscinny e Uderzo no seu melhor. Os muitos gags e trocadilhos (imagem de marca de Goscinny nos Astérix) enchem praticamente todas as pranchas, tal como os saborosos anacronismos de que é expoente máximo o druida psicanalista Amnésix.
Também como é hábito, há sempre uma ou duas figuras que são caricaturas de personalidades da época em que os álbuns são lançados ou que tiveram relevância histórica. Neste caso, o centurião Angélicus é a caricatura de Benito Mussolini, o ditador italiano, aliado de Hitler.
Mas nem por isso deixa de haver um fio condutor alicerçado na História, como já se demonstrou com as questões da romanização.
O facto é que O Combate dos Chefes é um álbum completamente louco (como os romanos, segundo a abalizada opinião de Obélix). A acção é imparável, tal como a velocidade narrativa. Voam menires. Sucedem-se as cenas de pancadaria. Panoramix fica amnésico, delirante e semi-louco. Um legionário desafia as leis da Gravidade. Uma galeria de gauleses, cada um com o seu transtorno mental, recorre ao psicólogo. E como se não bastasse, ainda há aquelas cenas psicadélicas-estroboscópicas em que, mercê de tomarem uma poção errada, o legionário Depressaquesefaztardus e os dois druidas vêem a sua epiderme alterar o seu tom para uma paleta de cores errática na qual até se chegam a formar formas geométricas.
E se o leitor pensa que o humor delirante e absurdo de Goscinny e Uderzo se detém por aqui, desengane-se. É que o combate entre chefes, que deverá traduzir-se no fim da aldeia de irredutíveis gauleses, tem de realizar-se num espaço condigno e não numa qualquer clareira de um bosque. Para isso, constroem um estádio. E à volta deste, começam a juntar-se nómadas bárbaros e as suas atracções de feira popular. Temos assim carrinhos de choque, barracas de tiro, de lembranças turísticas, de comezainas (como o javali em pão de especiarix) ou a fabulosa atracção das Montanhas Eslavas (a Rússia ainda não existia). No meio de toda esta confusão, os autores arranjam ainda espaço para homenagear Franquin – o criador de Marsupilami cujo retrato aparece à entrada da barraca dos fenómenos – e a revista Pilote onde Astérix era pré-publicado na época.
É caso para dizer que estes autores são loucos ou que fumaram qualquer coisinha a mais. Seja por uma razão, por outra ou por nenhuma delas, o resultado é uma história delirante com um ritmo acelerado.
Mas este álbum tem ainda outras peculiaridades. Enquanto nos seis álbuns anteriores assistimos às aventuras de Astérix e Obélix, agora vivemos também as da aldeia dos irredutíveis gauleses. Matasétix, o seu chefe, tem um protagonismo que ainda não tinha conhecido anteriormente, pois dele depende o futuro da aldeia. E até há uma aparição da sua proto-mulher, Boapinta, num estado embrionário, como se pode ver na página 17. Curiosamente, o velho veterano de guerra, Decanonix ou Geriatrix, ainda não tinha sido criado por esta altura, mas o seu sósia aparece por três vezes no álbum – na sétima vinheta da página 31, nas duas últimas da página 47 e na primeira da última página, aqui tal como o conhecemos hoje. No registo das novidades, é também aqui que conhecemos pela primeira vez o campo fortificado de Babácomrum.
Por fim, falar do desenho de Uderzo, focando-o numa única obra é quase coisa redundante. Não só é reconhecido e aplaudido mundialmente, como tem uma legião de seguidores como o provam as novas equipas encarregues de desenhar as aventuras de Astérix desde o álbum 35 (Astérix Entre os Pictos). Para além de ter literalmente milhões de leitores pelo mundo. O melhor elogio que se pode fazer ao seu traço é pedir uma única ao leitor – desfrute-o!
Pegar num álbum de Astérix após décadas da primeira leitura é algo que pode ser surpreendente. Como comecei por dizer, a percepção que tínhamos então não é a percepção que temos agora. Tal como o mundo de outrora não é o mundo que neste momento nos afronta.
Reler O Combate dos Chefes, obra de 1966, é um acto que nos centra na contemporaneidade imediata. Se não, vejamos! O chefe gaulês colaboracionista, Amaisbêigualaix, é um rufião que parece ser capaz de conquistar o mundo. É um afetado que ficou algures numa infância mal resolvida, quando praticava bullying, ou, à portuguesa, intimidação (física, verbal). Quando as condições são propícias, ataca, intimida. Quando não o são, retrai-se e acobarda-se. Lembra-vos alguém no plano internacional? Sou tentado a pensar que se Goscinny e Uderzo fossem vivos, concordariam comigo.
Como diz o adágio, “de são e de louco todos temos um pouco”. Mas uns têm mais de louco… e não são os romanos.
Ao contrário da realidade, felizmente que nas aventuras de Astérix tudo acaba num animado banquete… e sem cantorias.
Por Francisco Lyon de Castro