Há
memórias que têm tanto de fascinante como de inquietante.
E é
este sentimento misto que sinto ao recordar o meu primeiro embate na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. O primeiro dos primeiros tempos foi com a
cadeira de História das Civilizações Pré-Clássicas, com o maior especialista
português na matéria, o Professor José Nunes Carreira. A aula, praticamente,
resumiu-se ao Professor escrever no quadro a bibliografia aconselhada,
maioritariamente em… alemão.
Mas se
no primeiro tempo os meus colegas e eu apanhámos um susto, no segundo foi pior.
Apareceu-nos o então jovem Professor João Zilhão, especialista em Pré-História,
daqueles académicos que não se sente satisfeito sem ir para o campo, cavar em
sítios arqueológicos e replicar experiências de um passado muito remoto de modo
a entrar no espírito da coisa. Para ele, termos 11 a 13 valores nas frequências
era sinal de estudo e inteligência. Se bem me recordo, a nota máxima que deu
esse ano foram 14 valores. Ora, o pânico era geral entre os estudantes; a
exigência era tal que a maior parte sentia a inquietude perante a frequência.
Mas se isso era verdade, o contrário também era (por mim falo). Ter aulas com o
Professor Zilhão era algo fascinante. Primeiro porque era bom professor;
segundo porque o seu fascínio pela matéria acabava por me contagiar.
Aqui
chegado, posso agora falar-vos, caros leitores, do livro de André Diniz, Homem de Neandertal, publicado pela
Escorpião Azul.
São 90
páginas de banda desenhada muda, antecedidas por um prefácio do autor, que
serão agora escrutinadas à lupa deste pobre admirador do Professor Zilhão.
Vamos à
história!
40 000
a 30 000 anos a. C.
Uma tribo
Neandertal abandona a zona gelada onde habita e ruma ao Sul, para paragens
menos inclementes. O pequeno grupo, encabeçado por caçadores armados com lanças
de ponta tosca, comporta uma mulher grávida e uma criança. No caminho, aquele a
que chamarei de Contemplador fica para trás a observar, fascinado, uma
borboleta em voo. É admoestado pelo líder do grupo; é necessário prosseguir sem
interrupções.

Entretanto, afastado do grupo e, por isso, mais
vulnerável, sofre um ataque de um lobo. Apesar disso, consegue afastá-lo mesmo
a tempo de perceber que o grupo descobrira no bosque por onde se embrenhara uma
manada de antílopes de grande porte. O regozijo é enorme. Começa a perseguição.
Os antílopes partem em debandada; os neandertais correm atrás deles de lanças
em riste. O Contemplador, que os flanqueou, acaba por tropeçar e ser pisoteado
pela manada. O Líder arrasta-o para terreno mole e, com a ajuda das lanças,
abrem uma cova onde o enterram. Mas, para contentamento de todos, o
Contemplador está vivo e tem apenas uma perna ferida. O grupo não o deixa para
trás e ajuda-o a prosseguir caminho.

Passou mais uma lua e a tribo está acomodada na sua
nova caverna. É altura de partir para nova caçada. Mas o Contemplador, com a
perna ferida, não os pode acompanhar. Mesmo assim, com a ajuda de um cajado,
aventura-se para fora da caverna e fica fascinado com as marcas que vai
deixando pelo caminho argiloso, bem como com as figuras que consegue rabiscar
com o cajado.
À noite, o grupo regressa à caverna e banqueteia-se
com a caça. Entretanto, atrasado como sempre, chega o Contemplador. Sem a sua
parte da caça, pede um pouco a um dos seus companheiros. Este recusa, mas o
Líder intervém e o Contemplador acaba por ter a sua refeição.
Mais um dia, mais um passeio com o seu cajado. Pelo
caminho encontra uma pedra como nunca viu antes, repleta de estranhos rabiscos.
Mais tarde, mostra-a ao grupo, mas todos ignoram o seu entusiasmo. Para ele,
aquela é a pedra que mudará a sua vida e que o levará por aventuras que ainda
hoje tentamos descortinar…
Tenho cá a sensação que o autor André Diniz não teve
João Zilhão como professor. Mas é inequívoco que este seu trabalho envolveu uma
pesquisa séria que não é detectável no seu prefácio e que talvez não o seja
numa primeira leitura. Acresce o facto de a Banda Desenhada ser muda e não ter
por isso a ajuda das falas que poderiam evidenciar mais o seu trabalho como
“investigador”.
Em o Homem de
Neandertal encontramos ecos do romance O
Clã do Urso das Cavernas, de Jean M. Auel e do magnífico filme de
Jean-Jacques Annaud, A Guerra do Fogo.
Mas a obra tem argumento e méritos próprios.
A narrativa acompanha o quotidiano de um pequeno grupo
de neandertais na sua luta pela sobrevivência diária. Mas esta narrativa é
muda; nem sequer tem onomatopeias. Ora, o que pode parecer uma simplificação na
Banda Desenhada é, muitas vezes, a origem de confusão na cabeça do leitor,
sobretudo porque determinadas cenas, com a ausência de texto, podem tornar-se
confusas e pouco explícitas. Não é o caso do Homem de Neandertal! A narrativa aqui é clara e a trama facilmente
compreensível. Por isso, este livro pode ler-se num ápice e com agrado.
Mas a obra de André Diniz tem muito mais do que pode
parecer à primeira vista. Desde logo, é fácil detectar o período em que se
passa a acção se atentarmos nas primeiras páginas com montanhas repletas de
neve e gelo. Estamos no último período glacial – entre 100 000 e
12 000 atrás – que ficou conhecido como glaciação Würm. Mas o autor
fornece-nos outro dado – o contacto entre o homem de Neandertal em declínio e o
homem de Cro-Magnon em ascensão –, o que sugere um período temporal mais
reduzido, compreendido entre 40 000 e 30 000 anos a. C., tendo em
conta a existência de arte rupestre.

André Diniz mostra um grande cuidado na caracterização
do grupo de neandertais e nas diferenças que os distanciam dos cro-magnon (que
já se inserem no grupo dos humanos modernos). Desde logo, o mais evidente são
as características físicas diversas dos dois grupos. Enquanto os neandertais
são mais pequenos e “atarracados”, de nariz curto e abertura nasal ampla, testa
baixa e arcadas supraorbitárias proeminentes e um esqueleto robusto (entre
muitas outras características), os cro-magnon são mais altos, de fronte
arredondada e quase vertical, mandíbula e dentes de tamanho pequeno e ossos dos
membros relativamente delgados.

Se bem que ambos os grupos sejam
caçadores-recolectores nómadas, André Diniz marca bem as diferenças entre
Neandertal e Cro-Magnon. Tecnologicamente, as lanças do grupo do Contemplador
são toscas e não permitem arremesso. Por isso, a técnica de caça que vemos na
obra é a da perseguição e do confronto sem distanciamento, o que levaria a uma
taxa de mortalidade muito maior do que a que acontecia no grupo de cro-magnon.
Estes possuíam já uma técnica mais avançada de produção de lanças, fixando a
ponta com resina e permitindo o arremesso à distância. Para além disso, os
materiais das pontas não se resumem à pedra lascada e incluem chifre de rena e
marfim. É-lhes também conhecida a produção de arpões e de anzóis.
De igual modo, há uma grande diferença entre as roupas
de uns e de outros. Enquanto a dos neandertais é rude, a dos cro-magnon é mais
sofisticada e cosida, graças à invenção da agulha de osso.
Também na maneira de comer há diferenças substanciais.
O Neandertal come carne crua e é-lhe até reconhecida a antropofagia, com se
pode ver no álbum. Já o cro-magnon cozinha a sua carne como comprovam os vários
fogos rústicos encontrados nas suas cavernas e que também são visíveis na obra
de André Diniz.
Também não falha ao autor ilustrar a capacidade de
cuidar dos doentes já no homem de Neandertal, como se pode ver pela atenção
dispensada ao Contemplador ferido e doente. O mesmo se passa com os rituais
funerários comuns aos dois grupos, se bem que o dos cro-magnon revele uma
ritualização mais elaborada, com contas, ferramentas e conchas a serem
enterradas com o morto.
Mas, quanto a mim, o ponto alto do Homem de Neandertal revela-se duplamente
na abordagem magnífica feita à arte rupestre e ao tratamento dado à interacção
entre os Neandertal e os Cro-Magnon, dois acontecimentos essenciais na história
da humanidade.
É comummente aceite que a arte rupestre surgiu no
Paleolítico Superior há cerca de 40 000 ou 30 000 anos – precisamente
o período em que o homem de Neandertal é “destronado” pelo de Cro-Magnon. E se
segundo Samuel Noah Kramer, a história começa na Suméria com a invenção da
escrita cuneiforme 3 400 anos a. C., para mim, a linguagem universal bem
pode ter começado com a arte rupestre cerca de 35 000 anos antes.
Também com o tratamento dado à arte rupestre, André
Diniz é cuidadoso e informado. Assim, não corremos o risco de ver representadas
nas paredes das cavernas quaisquer elementos anacrónicos ou descontextualizados
da zona geográfica onde se passa a acção.
Mais a Norte seria possível ver representados mamutes
ou rinocerontes-lanudos, mas aqui o que vemos está adequado às paragens um
pouco mais a Sul: cavalos, cervídeos de grande porte, bisontes, javalis, ursos
e lobos. De igual modo, é representada a figura humana a lutar, a dançar, mas,
sobretudo, a caçar. Também se pode observar a representação de plantas bem como
sinais gráficos abstractos e palmas da mão. E André Diniz vai ainda mais além,
mostrando duas tecnologias de pintura rupestre – o carvão e a argila ocre.
Mas o essencial da arte rupestre na narrativa de Homem de Neandertal resume-se a uma
palavra: comunicação. Pois, é através da arte que o Contemplador (Neandertal)
consegue comunicar pacificamente com a tribo Cro-Magnon. Através da linguagem
simbólica destes últimos, o Contemplador percebe o seu quotidiano e os seus
hábitos que, afinal, não diferem assim tanto dos seus. Com André Diniz, a arte
rupestre surge como uma espécie de cimeira da paz com resultados
definitivamente positivos.
E à arte pictórica, o autor junta-lhe a arte musical
através do uso da flauta. O som produzido pelo mais antigo instrumento musical
do mundo deixa maravilhado o nosso Contemplador.
A arte rupestre tem o lugar central na história que
André Diniz nos conta em o Homem de
Neandertal. Mas há uma trama paralela que nos conta parte da evolução da
humanidade. E, mais uma vez, o autor não abdica de todo o rigor científico.
Entre os académicos e investigadores actuais, subsiste
a dúvida do que terá levado à extinção do homem de Neandertal. O facto não é de
importância menor pois, se tal não tivesse acontecido, existiriam hoje duas
espécies de Homo, o neanderthalensis e o sapiens. E, com certeza, a evolução da
humanidade ter-se-ia processado de outra forma.
O certo (até que surjam novas descobertas
arqueológicas) é que o Homem de Neandertal terá desaparecido “misteriosamente”
há cerca de 30 000 anos. E os indícios estão quase todos representados na
obra de André Diniz. Desde logo, o seu pequeno tamanho populacional e o
endocruzamento que leva à consanguinidade e, por consequência, à criação de
comunidades menos aptas, mais frágeis e, inclusive, atreitas a má-formações
físicas e à infertilidade. Atentem ao resultado do parto da Neandertal e à
maneira como o Líder resolve o assunto.
Outro dos factores considerados pelos especialistas como
possível motivo para a extinção do Homem de Neandertal é a doença e a epidemia,
nomeadamente pelo contacto com o Homem de Cro-Magnon. Também aqui, André Diniz
não deixa passar em branco o factor dos agentes patogénicos, com consequências
fatais no enredo.
Habitando o mesmo ecossistema, é quase certo que as
duas espécies competiam por recursos, nomeadamente a caça. E também é provável
que tal competição gerasse confrontos estre as duas populações. Ora, os
Cro-Magnon eram mais numerosos e possuíam vantagens evolutivas, tecnológicas e
até cognitivas, pelo que o desfecho dos confrontos penderia maioritariamente a
favor dos Cro-Magnon. Mais uma vez, André Diniz expressa esta teoria na sua
obra.
Também há a hipótese da “extinção” do Homem de
Neandertal se ter dado pelo cruzamento e assimilação pelo Homem de Cro-Magnon –
a chamada miscigenação. Mas como André Diniz não aborda o tema na sua obra,
deixo-vos aqui apenas a menção ao assunto e a remissão, para os mais
interessados, para a pesquisa acerca da “Criança do Lapedo”, importante
descoberta arqueológica feita em território português que parece provar a
teoria da miscigenação e que é hoje considerada tesouro nacional.
Com excepção do parágrafo anterior, tudo o que acima
se disse é tratado na obra de André Diniz, Homem
de Neandertal. A leitura despreocupada do álbum apresenta-nos apenas uma
aventura passada nos primórdios da humanidade, na qual a arte rupestre tem
importância decisiva na interacção de duas espécies.
Mas este livro é muito mais do que isso. É evidente a
pesquisa meticulosa do autor sobre as características físicas, os costumes, a
tecnologia e o sistema de crenças das duas espécies. Mas ao contrário deste
texto que agora vos apresento e que pode parecer fastidioso, a obra de André
Diniz flui sem o que poderia ser o entrave da palavra. E a ajudar a esta
fluidez está a sua arte angulosa, quase desconcertante, pejada de elementos
geométricos dos quais se destaca o triângulo.
Homem de
Neandertal de André Diniz é uma obra
magnífica a vários níveis, mas sobressai pela maneira como coloca a Arte
Rupestre no centro da acção e a transforma numa espécie de arte do diálogo
entre espécies.
Parece que o Homem de Neandertal se extinguiu, mas
parte dos seus genes continuam no nosso código genético. Por que será?
Por Francisco Lyon de Castro