Aii! A dor
também se trata com humor
Nestes
tempos em que o défice de atenção parece ter invadido irremediavelmente o
cérebro da maior parte da população mundial que fica com dores de cabeça se o
último vídeo viral do tiktok tem mais de 30 segundos, nada melhor do que fazer
uma análise relâmpago de um livro (coisa que nunca fiz). Mesmo assim, para os
mais empedernidos fãs daquela rede (?) social (?) em forma de app, devo
advertir que terão de multiplicar 30 segundos por si próprio várias vezes de modo
a chegarem ao derradeiro ponto final.
Contrariamente
ao que foi dito, há algo na internet que consegue captar a atenção até do maior
deficitário dela. É o Dr. Google. “As pestanas não me param de tremer. Será que
sofro de obstipação?”, pergunta a vizinha do 3.º esquerdo ao famoso Dr. virtual.
Ou, a mais comum “Não consigo evacuar. Será que vou ficar cego?”
O certo
é que o Dr. Google trouxe confiança à população mundial, que se acha agora à
altura, e mesmo acima, da classe médica. Eu próprio, com a ajuda do meu amigo
Dr. Google, já diagnostiquei vários cancros a amigos.
Ora,
entre tiktoks e Dr. Google, por vezes é publicado algo fora da caixa que tendo
como premissa o assunto sério da saúde, a leva ao leitor de forma humorística,
mas séria. Bem sei que parece um contrassenso. Ou se é sério ou se faz humor.
Não nos podemos esquecer, no entanto que o humor é uma coisa séria.
Se
dúvidas houver, é lerem Aii! – A dor
também se trata com humor, da autoria do Dr. Patrick Sichère e de Achdé, o
vosso conhecido desenhador de Lucky Luke, que acaba de ser publicado em
Portugal pela Ala dos Livros.
Vamos à
história!
Pois…
não há história! Há sim dois fios condutores. Um é a persistência permanente do
Dr. Marcelo Hipócrates que nos leva por uma viagem ao mundo da dor. O outro é
isso mesmo, a dor! Mas com humor.
Ou
seja, uma espécie de fantasma daquele que é, talvez, o mais famoso médico do
mundo, o grego Hipócrates, também considerado o “pai da medicina”, vai
falar-nos acerca dos diversos tipos de dor: a dor de cabeça, as dores
combatidas com analgésicos, a dor de dentes, a dor dos membros fantasmas, a
fibromialgia, a dor de costas, a dor no ânus e a dor nos pés. E vai fazê-lo com
porções iguais de seriedade e de humor.
O humor
vai para além dos gags, narrando-se episódios reais que hoje ganham
características anedóticas. Tal é o caso, por exemplo, de Luís XIII que, num só
ano, levou 215 clisteres. Ou de Lewis Carroll, o criador de Alice no País das
Maravilhas, que sofria de fortes enxaquecas com aura – aquelas que criam
alucinações. Talvez por isso tenha alucinado na sua obra, criando uma lagarta
falante, baralhos de cartas humanoides, uma Alice que vai dos 2 centímetros aos
12 metros de altura, e as famosas festas de não-aniversário, presididas pelo
Chapeleiro Louco.
O certo
é que estas viagens pela dor são nos apresentadas pelo Dr. P. Sichère e por
Achdé. E se este último contribui para a seriedade do desenho (e dos gags), o
Dr. Sichère é o garante da credibilidade da informação. Ou não fosse ele
professor e consultor no Centro da Dor do Hospital Lariboisière em Paris e
membro da IASP (International Association for the Study of Pain), entre outras.
Participando
no argumento é, no entanto, o traço característico de Achdé e a sua criação de
movimentos fluídos que conferem à obra um dinamismo que permite assimilar mais
facilmente toda a informação científica.
A
aposta dos autores é inteligente. A dor acompanha o homem desde os alvores da
humanidade. E não há ninguém no mundo que não a tenha sentido uma ou outra vez
(com excepção daqueles que têm insensibilidade congénita à dor). Nada melhor,
para os curiosos, sofredores e apreciadores de humor, do que uma obra que tem a
dor como tema.
Para
tornar Aii! ainda mais interessante,
os autores colocam páginas a dividirem cada capítulo nas quais são apresentadas
ferramentas e técnicas antigas que pretendiam apaziguar ou mesmo eliminar a
dor, como as tão desejadas trepanações.
Achdé,
longe do “seu” Lucky Luke, brinda-nos aqui com uma série de cameos nos quais,
para além do seu cowboy de eleição, podemos também encontrar a Harley Quinn, um
legionário de Astérix, o Drácula e o Corcunda de Notre-Dame. Acrescente-se uma
infindável galeria de figuras históricas ou da actualidade, como Amy Winehouse
ou Jimi Hendrix.
Aii! é uma
obra de vulgarização médica e histórica, na medida que coloca ao alcance de
todos informação que o Dr. Google só terá dispersa. Para além disso, fá-lo num
tom divertido e acessível.
Fico
com a sensação que este poderá ser o primeiro de vários volumes sobre o
assunto.
Por Francisco Lyon de Castro