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26 junho, 2025

Para quê o Dr. Google?

 

Aii! A dor também se trata com humor

 

Nestes tempos em que o défice de atenção parece ter invadido irremediavelmente o cérebro da maior parte da população mundial que fica com dores de cabeça se o último vídeo viral do tiktok tem mais de 30 segundos, nada melhor do que fazer uma análise relâmpago de um livro (coisa que nunca fiz). Mesmo assim, para os mais empedernidos fãs daquela rede (?) social (?) em forma de app, devo advertir que terão de multiplicar 30 segundos por si próprio várias vezes de modo a chegarem ao derradeiro ponto final.

 

Contrariamente ao que foi dito, há algo na internet que consegue captar a atenção até do maior deficitário dela. É o Dr. Google. “As pestanas não me param de tremer. Será que sofro de obstipação?”, pergunta a vizinha do 3.º esquerdo ao famoso Dr. virtual. Ou, a mais comum “Não consigo evacuar. Será que vou ficar cego?”

 

O certo é que o Dr. Google trouxe confiança à população mundial, que se acha agora à altura, e mesmo acima, da classe médica. Eu próprio, com a ajuda do meu amigo Dr. Google, já diagnostiquei vários cancros a amigos.

 

Ora, entre tiktoks e Dr. Google, por vezes é publicado algo fora da caixa que tendo como premissa o assunto sério da saúde, a leva ao leitor de forma humorística, mas séria. Bem sei que parece um contrassenso. Ou se é sério ou se faz humor. Não nos podemos esquecer, no entanto que o humor é uma coisa séria.

 

Se dúvidas houver, é lerem Aii! – A dor também se trata com humor, da autoria do Dr. Patrick Sichère e de Achdé, o vosso conhecido desenhador de Lucky Luke, que acaba de ser publicado em Portugal pela Ala dos Livros.

 

 

Vamos à história!

 

Pois… não há história! Há sim dois fios condutores. Um é a persistência permanente do Dr. Marcelo Hipócrates que nos leva por uma viagem ao mundo da dor. O outro é isso mesmo, a dor! Mas com humor.

 

Ou seja, uma espécie de fantasma daquele que é, talvez, o mais famoso médico do mundo, o grego Hipócrates, também considerado o “pai da medicina”, vai falar-nos acerca dos diversos tipos de dor: a dor de cabeça, as dores combatidas com analgésicos, a dor de dentes, a dor dos membros fantasmas, a fibromialgia, a dor de costas, a dor no ânus e a dor nos pés. E vai fazê-lo com porções iguais de seriedade e de humor.

 


O humor vai para além dos gags, narrando-se episódios reais que hoje ganham características anedóticas. Tal é o caso, por exemplo, de Luís XIII que, num só ano, levou 215 clisteres. Ou de Lewis Carroll, o criador de Alice no País das Maravilhas, que sofria de fortes enxaquecas com aura – aquelas que criam alucinações. Talvez por isso tenha alucinado na sua obra, criando uma lagarta falante, baralhos de cartas humanoides, uma Alice que vai dos 2 centímetros aos 12 metros de altura, e as famosas festas de não-aniversário, presididas pelo Chapeleiro Louco.

 

O certo é que estas viagens pela dor são nos apresentadas pelo Dr. P. Sichère e por Achdé. E se este último contribui para a seriedade do desenho (e dos gags), o Dr. Sichère é o garante da credibilidade da informação. Ou não fosse ele professor e consultor no Centro da Dor do Hospital Lariboisière em Paris e membro da IASP (International Association for the Study of Pain), entre outras.

 

Participando no argumento é, no entanto, o traço característico de Achdé e a sua criação de movimentos fluídos que conferem à obra um dinamismo que permite assimilar mais facilmente toda a informação científica.

 


A aposta dos autores é inteligente. A dor acompanha o homem desde os alvores da humanidade. E não há ninguém no mundo que não a tenha sentido uma ou outra vez (com excepção daqueles que têm insensibilidade congénita à dor). Nada melhor, para os curiosos, sofredores e apreciadores de humor, do que uma obra que tem a dor como tema.

 

 

 

Para tornar Aii! ainda mais interessante, os autores colocam páginas a dividirem cada capítulo nas quais são apresentadas ferramentas e técnicas antigas que pretendiam apaziguar ou mesmo eliminar a dor, como as tão desejadas trepanações. 

 

Achdé, longe do “seu” Lucky Luke, brinda-nos aqui com uma série de cameos nos quais, para além do seu cowboy de eleição, podemos também encontrar a Harley Quinn, um legionário de Astérix, o Drácula e o Corcunda de Notre-Dame. Acrescente-se uma infindável galeria de figuras históricas ou da actualidade, como Amy Winehouse ou Jimi Hendrix.

 


Aii! é uma obra de vulgarização médica e histórica, na medida que coloca ao alcance de todos informação que o Dr. Google só terá dispersa. Para além disso, fá-lo num tom divertido e acessível.

 

Fico com a sensação que este poderá ser o primeiro de vários volumes sobre o assunto.

 



 Por Francisco Lyon de Castro

  

09 junho, 2025

Homem de Neandertal Ou a arte do diálogo entre espécies


Há memórias que têm tanto de fascinante como de inquietante.


E é este sentimento misto que sinto ao recordar o meu primeiro embate na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O primeiro dos primeiros tempos foi com a cadeira de História das Civilizações Pré-Clássicas, com o maior especialista português na matéria, o Professor José Nunes Carreira. A aula, praticamente, resumiu-se ao Professor escrever no quadro a bibliografia aconselhada, maioritariamente em… alemão.


Mas se no primeiro tempo os meus colegas e eu apanhámos um susto, no segundo foi pior. Apareceu-nos o então jovem Professor João Zilhão, especialista em Pré-História, daqueles académicos que não se sente satisfeito sem ir para o campo, cavar em sítios arqueológicos e replicar experiências de um passado muito remoto de modo a entrar no espírito da coisa. Para ele, termos 11 a 13 valores nas frequências era sinal de estudo e inteligência. Se bem me recordo, a nota máxima que deu esse ano foram 14 valores. Ora, o pânico era geral entre os estudantes; a exigência era tal que a maior parte sentia a inquietude perante a frequência. Mas se isso era verdade, o contrário também era (por mim falo). Ter aulas com o Professor Zilhão era algo fascinante. Primeiro porque era bom professor; segundo porque o seu fascínio pela matéria acabava por me contagiar.


Aqui chegado, posso agora falar-vos, caros leitores, do livro de André Diniz, Homem de Neandertal, publicado pela Escorpião Azul.


São 90 páginas de banda desenhada muda, antecedidas por um prefácio do autor, que serão agora escrutinadas à lupa deste pobre admirador do Professor Zilhão.

 

Vamos à história!

 

40 000 a 30 000 anos a. C.

 

Uma tribo Neandertal abandona a zona gelada onde habita e ruma ao Sul, para paragens menos inclementes. O pequeno grupo, encabeçado por caçadores armados com lanças de ponta tosca, comporta uma mulher grávida e uma criança. No caminho, aquele a que chamarei de Contemplador fica para trás a observar, fascinado, uma borboleta em voo. É admoestado pelo líder do grupo; é necessário prosseguir sem interrupções.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

Entretanto, afastado do grupo e, por isso, mais vulnerável, sofre um ataque de um lobo. Apesar disso, consegue afastá-lo mesmo a tempo de perceber que o grupo descobrira no bosque por onde se embrenhara uma manada de antílopes de grande porte. O regozijo é enorme. Começa a perseguição. Os antílopes partem em debandada; os neandertais correm atrás deles de lanças em riste. O Contemplador, que os flanqueou, acaba por tropeçar e ser pisoteado pela manada. O Líder arrasta-o para terreno mole e, com a ajuda das lanças, abrem uma cova onde o enterram. Mas, para contentamento de todos, o Contemplador está vivo e tem apenas uma perna ferida. O grupo não o deixa para trás e ajuda-o a prosseguir caminho. 

Passou mais uma lua e a tribo está acomodada na sua nova caverna. É altura de partir para nova caçada. Mas o Contemplador, com a perna ferida, não os pode acompanhar. Mesmo assim, com a ajuda de um cajado, aventura-se para fora da caverna e fica fascinado com as marcas que vai deixando pelo caminho argiloso, bem como com as figuras que consegue rabiscar com o cajado.

À noite, o grupo regressa à caverna e banqueteia-se com a caça. Entretanto, atrasado como sempre, chega o Contemplador. Sem a sua parte da caça, pede um pouco a um dos seus companheiros. Este recusa, mas o Líder intervém e o Contemplador acaba por ter a sua refeição.

Mais um dia, mais um passeio com o seu cajado. Pelo caminho encontra uma pedra como nunca viu antes, repleta de estranhos rabiscos. Mais tarde, mostra-a ao grupo, mas todos ignoram o seu entusiasmo. Para ele, aquela é a pedra que mudará a sua vida e que o levará por aventuras que ainda hoje tentamos descortinar…

Tenho cá a sensação que o autor André Diniz não teve João Zilhão como professor. Mas é inequívoco que este seu trabalho envolveu uma pesquisa séria que não é detectável no seu prefácio e que talvez não o seja numa primeira leitura. Acresce o facto de a Banda Desenhada ser muda e não ter por isso a ajuda das falas que poderiam evidenciar mais o seu trabalho como “investigador”.

Em o Homem de Neandertal encontramos ecos do romance O Clã do Urso das Cavernas, de Jean M. Auel e do magnífico filme de Jean-Jacques Annaud, A Guerra do Fogo. Mas a obra tem argumento e méritos próprios.

A narrativa acompanha o quotidiano de um pequeno grupo de neandertais na sua luta pela sobrevivência diária. Mas esta narrativa é muda; nem sequer tem onomatopeias. Ora, o que pode parecer uma simplificação na Banda Desenhada é, muitas vezes, a origem de confusão na cabeça do leitor, sobretudo porque determinadas cenas, com a ausência de texto, podem tornar-se confusas e pouco explícitas. Não é o caso do Homem de Neandertal! A narrativa aqui é clara e a trama facilmente compreensível. Por isso, este livro pode ler-se num ápice e com agrado.

Mas a obra de André Diniz tem muito mais do que pode parecer à primeira vista. Desde logo, é fácil detectar o período em que se passa a acção se atentarmos nas primeiras páginas com montanhas repletas de neve e gelo. Estamos no último período glacial – entre 100 000 e 12 000 atrás – que ficou conhecido como glaciação Würm. Mas o autor fornece-nos outro dado – o contacto entre o homem de Neandertal em declínio e o homem de Cro-Magnon em ascensão –, o que sugere um período temporal mais reduzido, compreendido entre 40 000 e 30 000 anos a. C., tendo em conta a existência de arte rupestre.

André Diniz mostra um grande cuidado na caracterização do grupo de neandertais e nas diferenças que os distanciam dos cro-magnon (que já se inserem no grupo dos humanos modernos). Desde logo, o mais evidente são as características físicas diversas dos dois grupos. Enquanto os neandertais são mais pequenos e “atarracados”, de nariz curto e abertura nasal ampla, testa baixa e arcadas supraorbitárias proeminentes e um esqueleto robusto (entre muitas outras características), os cro-magnon são mais altos, de fronte arredondada e quase vertical, mandíbula e dentes de tamanho pequeno e ossos dos membros relativamente delgados.

 

 

 

 



Se bem que ambos os grupos sejam caçadores-recolectores nómadas, André Diniz marca bem as diferenças entre Neandertal e Cro-Magnon. Tecnologicamente, as lanças do grupo do Contemplador são toscas e não permitem arremesso. Por isso, a técnica de caça que vemos na obra é a da perseguição e do confronto sem distanciamento, o que levaria a uma taxa de mortalidade muito maior do que a que acontecia no grupo de cro-magnon. Estes possuíam já uma técnica mais avançada de produção de lanças, fixando a ponta com resina e permitindo o arremesso à distância. Para além disso, os materiais das pontas não se resumem à pedra lascada e incluem chifre de rena e marfim. É-lhes também conhecida a produção de arpões e de anzóis.

De igual modo, há uma grande diferença entre as roupas de uns e de outros. Enquanto a dos neandertais é rude, a dos cro-magnon é mais sofisticada e cosida, graças à invenção da agulha de osso.

Também na maneira de comer há diferenças substanciais. O Neandertal come carne crua e é-lhe até reconhecida a antropofagia, com se pode ver no álbum. Já o cro-magnon cozinha a sua carne como comprovam os vários fogos rústicos encontrados nas suas cavernas e que também são visíveis na obra de André Diniz.

Também não falha ao autor ilustrar a capacidade de cuidar dos doentes já no homem de Neandertal, como se pode ver pela atenção dispensada ao Contemplador ferido e doente. O mesmo se passa com os rituais funerários comuns aos dois grupos, se bem que o dos cro-magnon revele uma ritualização mais elaborada, com contas, ferramentas e conchas a serem enterradas com o morto.

Mas, quanto a mim, o ponto alto do Homem de Neandertal revela-se duplamente na abordagem magnífica feita à arte rupestre e ao tratamento dado à interacção entre os Neandertal e os Cro-Magnon, dois acontecimentos essenciais na história da humanidade.

É comummente aceite que a arte rupestre surgiu no Paleolítico Superior há cerca de 40 000 ou 30 000 anos – precisamente o período em que o homem de Neandertal é “destronado” pelo de Cro-Magnon. E se segundo Samuel Noah Kramer, a história começa na Suméria com a invenção da escrita cuneiforme 3 400 anos a. C., para mim, a linguagem universal bem pode ter começado com a arte rupestre cerca de 35 000 anos antes.

Também com o tratamento dado à arte rupestre, André Diniz é cuidadoso e informado. Assim, não corremos o risco de ver representadas nas paredes das cavernas quaisquer elementos anacrónicos ou descontextualizados da zona geográfica onde se passa a acção.

Mais a Norte seria possível ver representados mamutes ou rinocerontes-lanudos, mas aqui o que vemos está adequado às paragens um pouco mais a Sul: cavalos, cervídeos de grande porte, bisontes, javalis, ursos e lobos. De igual modo, é representada a figura humana a lutar, a dançar, mas, sobretudo, a caçar. Também se pode observar a representação de plantas bem como sinais gráficos abstractos e palmas da mão. E André Diniz vai ainda mais além, mostrando duas tecnologias de pintura rupestre – o carvão e a argila ocre.

Mas o essencial da arte rupestre na narrativa de Homem de Neandertal resume-se a uma palavra: comunicação. Pois, é através da arte que o Contemplador (Neandertal) consegue comunicar pacificamente com a tribo Cro-Magnon. Através da linguagem simbólica destes últimos, o Contemplador percebe o seu quotidiano e os seus hábitos que, afinal, não diferem assim tanto dos seus. Com André Diniz, a arte rupestre surge como uma espécie de cimeira da paz com resultados definitivamente positivos.

E à arte pictórica, o autor junta-lhe a arte musical através do uso da flauta. O som produzido pelo mais antigo instrumento musical do mundo deixa maravilhado o nosso Contemplador.

A arte rupestre tem o lugar central na história que André Diniz nos conta em o Homem de Neandertal. Mas há uma trama paralela que nos conta parte da evolução da humanidade. E, mais uma vez, o autor não abdica de todo o rigor científico.

Entre os académicos e investigadores actuais, subsiste a dúvida do que terá levado à extinção do homem de Neandertal. O facto não é de importância menor pois, se tal não tivesse acontecido, existiriam hoje duas espécies de Homo, o neanderthalensis e o sapiens. E, com certeza, a evolução da humanidade ter-se-ia processado de outra forma.

O certo (até que surjam novas descobertas arqueológicas) é que o Homem de Neandertal terá desaparecido “misteriosamente” há cerca de 30 000 anos. E os indícios estão quase todos representados na obra de André Diniz. Desde logo, o seu pequeno tamanho populacional e o endocruzamento que leva à consanguinidade e, por consequência, à criação de comunidades menos aptas, mais frágeis e, inclusive, atreitas a má-formações físicas e à infertilidade. Atentem ao resultado do parto da Neandertal e à maneira como o Líder resolve o assunto.

Outro dos factores considerados pelos especialistas como possível motivo para a extinção do Homem de Neandertal é a doença e a epidemia, nomeadamente pelo contacto com o Homem de Cro-Magnon. Também aqui, André Diniz não deixa passar em branco o factor dos agentes patogénicos, com consequências fatais no enredo.

Habitando o mesmo ecossistema, é quase certo que as duas espécies competiam por recursos, nomeadamente a caça. E também é provável que tal competição gerasse confrontos estre as duas populações. Ora, os Cro-Magnon eram mais numerosos e possuíam vantagens evolutivas, tecnológicas e até cognitivas, pelo que o desfecho dos confrontos penderia maioritariamente a favor dos Cro-Magnon. Mais uma vez, André Diniz expressa esta teoria na sua obra.

Também há a hipótese da “extinção” do Homem de Neandertal se ter dado pelo cruzamento e assimilação pelo Homem de Cro-Magnon – a chamada miscigenação. Mas como André Diniz não aborda o tema na sua obra, deixo-vos aqui apenas a menção ao assunto e a remissão, para os mais interessados, para a pesquisa acerca da “Criança do Lapedo”, importante descoberta arqueológica feita em território português que parece provar a teoria da miscigenação e que é hoje considerada tesouro nacional.

Com excepção do parágrafo anterior, tudo o que acima se disse é tratado na obra de André Diniz, Homem de Neandertal. A leitura despreocupada do álbum apresenta-nos apenas uma aventura passada nos primórdios da humanidade, na qual a arte rupestre tem importância decisiva na interacção de duas espécies.

Mas este livro é muito mais do que isso. É evidente a pesquisa meticulosa do autor sobre as características físicas, os costumes, a tecnologia e o sistema de crenças das duas espécies. Mas ao contrário deste texto que agora vos apresento e que pode parecer fastidioso, a obra de André Diniz flui sem o que poderia ser o entrave da palavra. E a ajudar a esta fluidez está a sua arte angulosa, quase desconcertante, pejada de elementos geométricos dos quais se destaca o triângulo.

Homem de Neandertal de André Diniz é uma obra magnífica a vários níveis, mas sobressai pela maneira como coloca a Arte Rupestre no centro da acção e a transforma numa espécie de arte do diálogo entre espécies.

Parece que o Homem de Neandertal se extinguiu, mas parte dos seus genes continuam no nosso código genético. Por que será?

 

Por Francisco Lyon de Castro