Mostrar mensagens com a etiqueta leituras. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta leituras. Mostrar todas as mensagens

05 abril, 2025

As Fábulas pelo olhar de Francisco Lyon

 Fábulas das Terras Perdidas

Ciclo 1 - Sioban


A génese da grandeza
 

Há autores que, não tendo por trás de si aquela máquina bem oleada que é a dos comics mensais norte-americanos (em que um escreve, outro desenha a lápis, outro passa o traço a tinta, outro pinta e outro faz a balonagem), conseguem, no entanto, juntar em si todas (ou quase todas) estas funções e ainda dividirem-se por dois ou mais projectos sem perder a qualidade.

 

No caso presente, falo de Grzegorz Rosinski que, ao mesmo tempo que se encarregava da realização artística dos álbuns 19 a 23 da mítica série Thorgal, aceitava o convite de Jean Dufaux para, em conjunto, iniciarem um novo projecto: as Fábulas das Terras Perdidas.

 

De 1993 a 1998 e ao longo de quatro álbuns, Dufaux e Rosinski criaram um novo universo, ambientado numa Idade Média fictícia na qual os jogos de poder andam a par com a feitiçaria e com os mais vis actos sanguinolentos.

 

E se neste primeiro ciclo das Fábulas os dragões estão omissos, os tronos e a luta para os manter ou conquistar é uma constante.

 

E tudo antes da Guerra dos Tronos que surgiria apenas três anos depois.

 

Sioban, o Ciclo 1 das Fábulas das Terras Perdidas é, por isso, a génese da Alta Fantasia com incursões pela política. Mas é também a génese de uma saga que comporta já quatro ciclos e que deve ser lida também como um todo, como veremos mais à frente.

 

Em boa hora a Arte de Autor publica o integral do Ciclo Sioban, numa edição de luxo com uma capa com verniz de selecção aveludado e um caderno de 14 páginas de extras.

 

Vamos à história!

 

O mago Bedlam reina com poder absoluto sobre as terras de Eruin Dulea desde o dia funesto em que matou Wulff o Lobo Branco, herdeiro dos Sudenne. Mas nada é irreversível e o usurpador sabe-o bem pois conhece as lendas do seu país. Entre dentes, ele murmura que as fábulas das terras perdidas ressoarão assim que florirem de novo as árvores da verdade. Então, os heróis caídos na terrível batalha de Nyr Lynch reerguer-se-ão e seguirão aquele ou aquela que os saiba levar à vitória.

 

Sioban, a última da linha dos Sudenne, não sabe ainda que irá ser essa mão vingadora. Por agora, contenta-se em aprender o ofício das armas. Mas nela está instalada a tristeza e desconfiança. Como é que sua mãe, Lady O’Mara, tão casta e bela, pode ir casar em segundas núpcias com esse homem maléfico e tenebroso que é o Lorde Blackmore? Será que ela já esqueceu o seu marido e pai de Sioban, o Lobo Branco? Mas nada é assim tão simples. Esta aliança é necessária para o país de Eruin Dulea que necessita de uma mão férrea e poderosa para sobreviver após a tomada de parte do poder pelo mago Bedlam.

 

 


A lenda misteriosa que prediz que um dia soará um lamento nas terras que viram partir Lobo Branco e o seu exército para o outro mundo atormenta Bedlam, alimenta a sede de poder de Lorde Blackmore, dá esperança a Lady O’Mara e envolve em silêncio Sioban. Um lamento que avisa que os que morreram voltarão e irão designar aquele que continuará a luta contra os usurpadores…

 



Juntar Dufaux – um dos melhores argumentistas das últimas décadas – e Rosinski – o inspirado cocriador de Thorgal – é ter a receita para o sucesso.

 

Neste primeiro ciclo das Fábulas das Terras Perdidas, composto pelos álbuns Sioban, Blackmore, Dona Gerfaut e Kyle de Klanach, os dois transportam-nos para o universo de Sioban, princesa sem reino, mas animada por uma extraordinária sede de vingança e de reconquista.

 

Dufaux, mestre narrador, sabe bem o que faz. Este Ciclo Sioban divide-se em dois arcos de história, cada um com direito a dois álbuns. E se no primeiro Dufaux mostra toda a sua energia criativa, no segundo contem-na e cimenta as linhas definidoras do seu novo mundo.

 

Em Sioban e Blackmore, há que prender toda a atenção do leitor para algo de novo. Há que dar a conhecer todos os personagens principais, a história que decorre no tempo presente da leitura e aquela que nos mostra os acontecimentos passados que definem o presente. Um presente ambientado em uma Idade Média fantástica, glorificada por castelos, fortalezas, cavaleiros de armadura, donzelas puras e outras nem tanto, salões onde decorrem lautos banquetes, feitos de armas, batalhas épicas e a plebe que vive à margem de heroísmos e do correr das façanhas.

 


 

Mas se a inevitabilidade de utilizar estes elementos na narrativa é compreensível dentro do género, Dufaux vai bem além dos clichés. As Fábulas das Terras Perdidas possuem a força dos contos fantásticos sabiamente misturada com a magia das lendas celtas e a crueza das sagas nórdicas. Força, magia e crueza que criam as condições para que o leitor possa mergulhar em um universo sombrio, violento, bem longe das séries de fantasia heroica. Aqui, são os homens, bons ou maus, que tentam escapar ao seu destino ou, pelo contrário contribuem para que ele se realize. Uns e outros sem consciência de que poderão ser heróis ou vilões, sabendo que a única coisa que conta é a sobrevivência num ambiente hostil.

 

As Fábulas das Terras Perdidas é uma BD séria que tem como únicos momentos de descompressão as peripécias de Ouki, a pequena criatura azul que dá cabo da paciência de Lam, o mestre cozinheiro do castelo dos Sudenne, e o amor enganosamente platónico entre Droop, o mestre de armas de Sioban, e Dona Gerda, aia da rainha. Mas estas duas válvulas destinam-se apenas a aliviar o peso desta história trágica perfumada de irrealidade.

 


Esta história que Dufaux nos oferece, digna das grandes epopeias fantásticas, mistura realidade e lenda, tornando-as de tal modo intrincadas que acabam por se confundirem. Levado por personagens carismáticos, este conto, logo desde o início, cria um ambiente deveras opressivo, reforçado por uma narrativa de grande qualidade poética. Eruin Dulea está, invariavelmente, coberta pelas brumas ou por chuvas copiosas que parecem deixar adivinhar a tragédia.

 

Dufaux sabe contar, sabe fazer avançar a narrativa. As peças do puzzle, plantadas aqui e ali, acabam por se encaixar na perfeição e dão a consistência necessária a um universo brilhantemente construído e com um ambiente muito particular. E mesmo que o primeiro momento do segundo arco da história tenha uma narrativa mais lenta, tudo é compensado no derradeiro acto e numa série de reviravoltas credíveis em fecho de ciclo.

 


Mas às qualidades narrativas de Dufaux temos de acrescentar o virtuosismo artístico de Rosinski.

 

Em 1993, quando foi publicado o primeiro álbum, a expectativa de ver o desenhador de Thorgal embarcar noutro projecto era muita. Mais de trinta anos passados, a expectativa esbateu-se, ficando o deleite de ver Rosinski fora do registo da saga nórdica. E, no entanto, estamos muito próximos, graficamente, de Thorgal. Por momentos, ao vermos a vinheta que abre a página 140 da presente edição até somos levados a pensar na discreta semelhança que tem com a imagem das guardas dos álbuns de Thorgal.

 


Este é dos casos em que os desenhos de um autor se misturam na perfeição com as palavras do outro autor. Uma história trágica, com laivos de saga, na qual a política e os jogos de poder enegrecem ainda mais a fragilidade da alma humana, não poderia ser melhor representada do que com os cenários brumosos, terras inóspitas, rochedos ameaçadores e céus sombrios criados por Rosinski.

 


Mas a arte do desenhador polaco mostra aqui todos os predicados a que nos foi habituando ao longo da sua carreira.

 

Desde logo, o domínio absoluto da sombra e da luz. Rosinski sabe criar como ninguém aquele tipo de imagens que, se estiverem ausentes de cor, deixam adivinhar todas as tonalidades. E isso consegue-o através de um jogo complexo e minucioso do preto e do branco. Ora, quando as imagens são coloridas, o impacto é ainda maior, como acontece, por exemplo, com a prancha da página 43 que agora se reproduz. O jogo é subtil. As quatro primeiras vinhetas vão do mais luminoso para o muito sombrio, subsistindo apenas uma réstea de luz no rosto do protagonista. Mas nas quatro últimas vinhetas, o efeito é o contrário – do mais sombrio para o mais luminoso, sendo este de novo o rosto do protagonista.

 

 

Outro bom exemplo deste domínio é o da vinheta que se segue. Aqui, o predomínio é o da sombra que cobre o último plano e avança pelos flancos, envolvendo a luminosidade que se aproxima do leitor, vinda de um segundo plano. Já o primeiro plano vê sombra e luz misturadas na perfeição.

 


Por fim, como exemplo, temos a cena nocturna da página 127. Os cinzentos e o preto dominam e são quebrados apenas pela luminosidade fugaz da chuva. E para que o leitor não perca o foco da cena, um único e solitário ponto de luz quente que nos indica onde a acção se vai desenrolar.

 


Para além do domínio da sombra e da luz, Rosinski tem como outro predicado a capacidade de compor paisagens como ninguém. Paisagens que não são apenas bonitas, mas que desempenham o seu papel na narrativa e a tornam única e inesquecível. Deixo-vos dois exemplos sem mais explicações.




A isto, há que juntar o seu sentido de profundidade, com os pontos de fuga a perderem-se em horizontes longínquos, como é o caso com todos os bons pontos de fuga.

 


Para além do domínio da sombra e da luz, da composição de paisagens inesquecíveis, de um apurado sentido de profundidade e da capacidade de criar personagens visualmente marcantes, Rosinski é também mestre a desenhar cenas de acção, do micro para o macro, do duelo à carga de cavalaria, do embate de dois exércitos ao intricado de lanças nas abordagens das batalhas navais, como é o caso que se segue.

 



Por fim, e adequado ao tom poético criado por Dufaux para a sua narrativa, Rosinski consegue desenhar momentos em que quase sentimos os versos do bardo a serem declamados ao redor de uma lareira crepitante. As palavras estão ausentes e a simplicidade é apenas aparente. Em um e outro exemplo que se seguem, os elementos centrais da narrativa estão lá. No primeiro, a árvore da verdade; no segundo, a entrada brumosa das Charnecas Perdidas.




Este volume integral do primeiro ciclo das Fábulas das Terras Perdidas é incontornável para qualquer apreciador da Nona Arte. Seja pela qualidade da história criada por Jean Dufaux, seja pela qualidade artística de Grzegorz Rosinski.

 

O Ciclo Sioban tem méritos próprios e lê-se como coisa única. Mas, na verdade, é a génese de algo mais grandioso. Nos anos que se seguiram à sua parceria com Rosinski, Dufaux aliou-se a três conceituados criadores e com eles criou os ciclos 2, 3 e 4, sendo que apenas o segundo está terminado. Aliás, é este segundo ciclo, o dos Cavaleiros do Perdão, que a Arte de Autor se prepara para publicar em Portugal, desenhado pelo grande Philippe Delaby, entretanto falecido, e com quem Dufaux fez nova parceria na criação da série peplum, Murena. Béatrice Tillier (conhecida dos portugueses através do álbum Fadas e Ternos Autómatos) está a terminar o terceiro ciclo e Paul Teng, o quarto.

 

Entretanto, leiam ou releiam esta aventura plena de imaginação, de sonho, de magia, de lendas e maldições. A história de uma família real atormentada, pelas palavras de Dufaux e pelo desenho de Rosinski. Os dois criam a génese da grandiosidade, onde até os piores momentos são plenos de poesia. Ou não pairasse no ar o mote “…o mal reside no coração do amor.”

 

 

Por Francisco Lyon de Castro

 

05 janeiro, 2025

As Melhores Leituras de 2024 - Autores estrangeiros

Terminadas as últimas leituras pendentes, julgo estar nas condições de poder afirmar que foi um ano, onde tivemos, mais uma vez, uma belíssima oferta. A verdade é, que considero, que tem sido assim nos últimos tempos. Temos sido uns leitores privilegiados, por termos visto por cá publicadas excelentes obras, de grandes autores, em magnificas edições. 2024 foi mais um desses anos. Estão de parabéns, portanto, os nossos editores.

Continuando com o Balanço de 2024, que iniciei com as escolhas das minhas melhores leituras de autores portugueses, prossigo agora com as escolhas das minhas melhores leituras de autores estrangeiros, em que todas elas mereceram a minha melhor avaliação.

Fica aqui o meu TOP 9 da BD estrangeira de 2024 (aleatoriamente arrumado): 


Breves notas sobre as escolhas:

Devo dizer que existiram álbuns, quer pela intensidade narrativa, quer pelo desenho, não me deixaram indiferente, da primeira à ultima página, e por causa disso tiveram desde logo entrada direta no meu TOP 9 do ano.

A ESTRADA, de Manu Larcenet, edição Ala dos Livros, foi logo o primeiro em Abril. A minha critica pode ser lida aqui. Seguido de outro álbum que me deixou rendido, O COMBATE DE HENRY FLEMING, de Steve Cuzor, também numa edição magnifica da Ala dos Livros. Também escrevi aqui.

Depois tivemos obras que são voz e memória de períodos negros da História universal. Narrativas que também não foram de leitura fácil, e que retratam dolorosas realidades. Falo de ERVA, a novela gráfica da coreana Keum Suk Gendry-Kim, numa edição da Iguana. A autora, uma das sensações do ano e convidada do Amadora BD, com uma enorme sensibilidade narrativa, apoiada no seu traço simples, a preto e branco, de linhas soltas e pouco dado a pormenores, deu voz às mulheres coreanas que foram vitimas de escravidão sexual, as chamadas “mulheres de conforto” dos soldados japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial. Uma história brutalmente honesta, centrada no relato de uma das sobreviventes, o que confere uma autenticidade visceral à obra.

E de O ABISMO DO ESQUECIMENTO, de Pablo Roca, edição Ala dos Livros. É uma viagem ao passado recente de Espanha, onde o autor explora uma ferida aberta pela Guerra Civil Espanhola e os seus ecos no presente. Uma obra que aborda essa necessidade tão humana de querer despedir-nos de forma digna daqueles que nos são queridos, numa vontade que não só reforça a importância de preservar a memória dos que partem mas que também serve como um acto de resistência para que as lições da História nunca sejam esquecidas.

E numa altura em que a palavra Liberdade, e tudo que ela representa, é tão falada, ler uma obra que aborda a falta dela é um exercício que se recomenda. E a edição integral de JONAS FINK, de Vittorio Giardino em dois volumes, numa edição da Arte de Autor, é um belo exercício narrativo gráfico, numa obra que transcende o tempo e o espaço e que oferece uma janela para a luta de resistência humana contra a opressão.

E dos que se seguem não houve como escapar. Foram leituras prazerosas de universos que são paixão, e que tão bem foram tratados em banda desenhada. AS GUERRAS DE LUCAS, edição da Ala dos Livros, tem entrada directa nesta categoria. É um magnifico conto de bastidores. Todas aquelas histórias soltas, rumores e amores, que ouvimos falar sobre a rodagem do primeiro filme da saga Star Wars  encontram aqui o seu tempo e espaço com o devido enquadramento. Sentimos que o poder da força acompanhou George Lucas. Uma narrativa biográfica obrigatória para fans da saga.

E NA CABEÇA DE SHERLOCK HOLMES, numa edição de A Seita. Retomar ao universo de Conan Doyle, num dos álbuns mais originais do ano, seguindo o desfiar do fio do raciocínio lógico do melhor detective do mundo, num estética sumptuosa e elegante e enquadramentos desafiantes, foi puro deleite. 

A holandesa Aimeé de Jongh chegou-nos em dose dupla. É uma belíssima autora, e foi o seu trabalho original em DIAS DE AREIA, edição da Asa, que me cativou. Uma históira de resiliência humana num contexto histórico marcado pela dureza da paisagem e pelo desespero da sobrevivência, que nos transporta para o Dust Bowl, um desastre ambiental e social na década de 1930, e um dos períodos mais difíceis da história americana.

Fecho com manga. Jiro Taniguchi é dos melhores contadores de histórias em banda desenhada. Um autor com uma sensibilidade artística maravilhosa. E tem em BAIRRO DISTANTE, edição da Devir, uma bela história sobre a vida, que nos faz reflectir sobre o passado, o peso das escolhas feitas e os laços que definem a nossa existência. Mais uma narrativa profundamente humana, desenhada pelo seu traço detalhado e delicado, e uma das melhores obras que li deste autor.

 

Ficam fechadas as minhas escolhas. Amanhã encerro este Balanço de 2024, com a publicação do Estado da Arte, a análise do mercado editorial nacional de BD do último ano, com a listagem de todos os lançamentos contabilizados.

 

30 dezembro, 2024

As Melhores Leituras de 2024 - Autores portugueses

Os dias, por aqui, tem sido aproveitados para muitas leituras, até porque o ano fica marcado, entre outras, por um número recorde de lançamentos, incluindo de autores nacionais. A produção nacional de banda desenhada foi verdadeiramente incomum, face aos últimos anos, e correspondeu, em 2024, a cerca de 16% da oferta total (os números finais ficam para o habitual Estado da Arte, o balanço que irei aqui publicar nos próximos dias).

E perante tão farta colheita, achei que este ano se justificava a elaboração de duas listas de melhores leituras de 2024: uma referente a autores nacionais e outra de autores estrangeiros. A ideia, como sempre, não é de eleger tudo e todos, mas apenas aquelas que se destacaram pela sua qualidade narrativa e gráfica.

Assim, começo pelos nacionais, e aqui fica o meu top 5 de BD portuguesa de 2024: 

  1. Corvo VII – O Despertar dos Esquecidos (ed. Ala dos Livros)
  2. Fojo (ed. Kingpin Books / A Seita) 
  3. Lusíadas – Parte I (ed. Levoir)
  4. Sol (ed. A Seita)
  5. Atendimento Geral (ed. Escorpião Azul)
 
1. Começo pelo sétimo do Corvo. Um dos grandes injustiçados nos prémios do último Amadora BD, volta aqui a atingir o nível da excelência. Se sobre o desenho já sabemos que é absurdamente bom, ao nível do argumento a coisa atinge o pináculo da criação. Quando poderíamos pensar que após 30 anos de histórias de bairro do Corvo já não haveria muito mais para contar, Luís Louro consegue descobrir num idoso perdido o mote para a maior e a mais humana de todas as aventuras. A realidade da terceira idade, de idosos abandonados em lares é aqui aproveitada pelo nosso herói para, entre quatro paredes,  riscar a palavra triste e troca-la por uma bem disposta aventura, carregada de humor refinado (atente-se aos os deliciosos diálogos em bom português com os “esquecidos” do R.I.P.) que fica como uma das suas mais tocantes missões, naquela onde se irá revelar realmente super. E ver uma temática social que é tão cara a todos nós ser aqui abordada com sensibilidade, a que se junta uma cereja no topo do bolo que é aquele final de história, atira este DESPERTAR directamente para o topo dos melhores álbuns do Corvo. 

Avaliação: 



2. Em FOJO, Osvaldo Medina regressa ao papel de autor completo que tão bem vestiu no seu universo Kong. Assume agora a responsabilidade por uma história de tragédia. No cenário de uma aldeia esquecida nos confins da montanha, marcada pelo isolamento, que entra em sobressalto à medida que se descobre que a morte, na figura de um assassino, anda à solta. O autor recria com mestria um ambiente rural português, triste e sombrio, com as suas crenças e segredos. As personagens de Fojo que dão força à narrativa, são figuras humanas marcadas por traumas e escolhas difíceis. Visualmente, Medina entrega mais um excelente trabalho com um traço detalhado e expressivo. Os seus enquadramentos transmitem tensão psicológica, e são complementados por uma paleta de cores minimalista que reforça a atmosfera densa de uma história envolvente, bem conseguida, que nos conduz a uma leitura ávida, página após página. E depois da leitura da última página ficamos com a certeza de que Fojo é, sem dúvida, um dos melhores exemplos do potencial narrativo e artístico do Osvaldo Medina.

Avaliação:


 

3. Se a obra maior de Luiz Vaz de Camões não é de leitura fácil, não podemos esperar que que a sua literal adaptação para banda desenhada o seja. Vamos ser sinceros, não é. Mas desfrutar de OS LUSÍADAS nesta experiência visual a três mãos é absolutamente fantástico. A obra que nos chegou este ano, incluída na colecção de Clássicos Portugueses da Levoir, é um projeto tripartido entre os artistas Daniel Silvestre, Miguel Rocha e João Lemos com a coordenação de Pedro Vieira de Moura, e ainda que correndo o risco de avaliar um todo pela parte, posso dizer que ficou muito bem entregue. De início Camões, o narrador onisciente, que nos dá a visão divina e humana dos eventos, surge-nos pelo traço e cores suaves de Daniel Silvestre, uma das boas revelações do ano. Ilustrar toda a atribulada viagem de Vasco da Gama pela costa oriental da África, desde do episódio do velho do Restelo até ao encontro com o Adamastor, entremeada pelo concílio dos deuses, ousou Miguel Rocha. E aqui o desenho explode em belas composições e cores. Enche as páginas com um estilo visualmente delirante que combina com uma paleta cromática arrojada. De uma absoluta beleza. Entre Cantos ficam os feitos dos reis portugueses narrados em episódios da História de Portugal, por conta do traço elegante e fluído de João Lemos, que em boa hora regressou à bd portuguesa. Esta primeira parte reúne os Cantos I a V da epopeia camoniana, e é, sem dúvida, umas das melhores narrativas gráficas do ano, que merecia uma melhor uma edição, no mínimo em generosas medidas 235x320 franco-belga. A segunda parte da viagem está marcada para 2025. 

Avaliação:


 

4. Com SOL, o Diogo Carvalho apresenta-nos o seu trabalho de maior fôlego. Arrisca numa obra de ficção-científica, um género cada vez mais pouco frequente na banda desenhada portuguesa. Serve-se habilmente de múltiplas referências cinematográficas, e usa os códigos do Oeste Selvagem para construir aqui um western futurista, numa realidade longínqua onde cada planeta vale em função dos seus recursos naturais. A história segue Sol, uma força solitária da natureza de resiliência e determinação, que atravessa um planeta mineiro desolado e esquecido, numa jornada pela sobrevivência em busca de uma planta com propriedades medicinais únicas. A chegada de um estranho à cidade que é sempre olhado com uma ameaça à ordem instalada poderá parecer um cliché, mas é o gatilho para uma aventura recheada de acção, até porque o autor não poupa a sua personagem principal a inúmeras situações de perseguições e explosões. Uma história com várias leituras, onde o Diogo não deixa de reflectir as suas preocupações numa espécie de antevisão, como o presente, com a degradação ambiental, com a exploração intensiva de recursos naturais e a subjugação de populações a interesses superiores poderá bem vir ser um futuro. SOL é uma bela surpresa.

Avaliação:


 

5. Pelas suas anteriores obras, já poderíamos dizer Paulo J. Mendes é o digno sucessor do humor nonsense que encontrávamos nos trabalhos de José Carlos Fernandes. E neste seu novo livro, ATENDIMENTO GERAL, confirma. Mostra-nos essa continuidade com mais um dos seus retratos, onde entrelaça o nosso quotidiano com um humor satírico e um toque de critica social. Sob o pretexto da abertura de uma sucursal de um balcão de serviços de “percentuais e coeficientes” numa tradicional vila do interior rendida ao “cuntemporâneo” onde amores e desamores perdidos voltam à tona, o Sr. Lombinhos é a figura principal de rol de novos personagens, numa narrativa que segue com o autor a jogar entre o surreal e o absurdo, levando situações do dia a dia a extremos desconcertantes. Abusando dos jogos de palavras e diálogos improváveis, o autor consegue equilibrar o exagero humorístico com um olhar atento aos comportamentos sociais, resultando numa comédia que diria ser ao mesmo tempo despretensiosa e reflexiva. E apesar da história pecar um final algo excessivo, nesta obra, Paulo J. Mendes confirma o seu talento para transformar o banal em hilariante e o previsível em surpreendente, criando um universo onde o humor caustico é uma poderosa ferramenta de crítica e entretenimento. 

Avaliação:


 

 

29 setembro, 2024

Leituras: O combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor

Posso parecer ser suspeito para falar desta obra, pois envolve Steve Cuzor, mas a verdade é que este O combate de Henry Fleming é mais um tratado em termos de argumento e desenho. O autor adapta para banda desenhada o romance The Red Badge of Courage, de Stephen Crane, cuja narrativa decorre durante a brutal Batalha de Chancellorsville no decurso da Guerra Civil Americana.

Depois da leitura do magnifico Uma estrela de algodão preto (Ala dos Livros, 2023), mudamos de cenário, mas continuamos num teatro de guerra. Nas margens do rio Rappahannock, Henry Fleming é o jovem protagonista que nos conduz até a linha da frente do seu primeiro combate. Enquanto leitores somos colocados no campo visual de um simples soldado de infantaria. E a partir daqui tudo se desenrola. As conversas e as angústias antes e durante a batalha. A loucura do compromisso de quem marcha para a morte. É esta a força da narrativa. 

Mas mais que o horror da guerra, a obra aborda a irracionalidade da mesma. O regimento de Henry é tratado como “carne para canhão”. Meros campónios, labregos ao dispor de ordens estúpidas. Mas Henry questiona-se. Vagueia entre sentimentos e arrependimentos. A vontade de fugir e a vergonha de ter fugido.  Cuzor alcança o equilíbrio entre a complexa luta interna de Henry e a brutalidade e intensidade das cenas de batalha retratadas de forma realista. A ilustração perfeita do desejo de combater e o medo de morrer. Sentimos o tormento e compreendemos as acções, porque se trata aqui de (mais) uma reflexão sobre o absurdo da guerra, e neste sentido o desfecho da história não desilude.

O autor desenha ambientes, cenários, momentos, cenas, como quem tira belas fotografias, e o resultado é sumptuoso ao longo de 150 páginas. Os tons monocromáticos que acompanham toda a narrativa gráfica conferem-lhe um forte impacto visual. Tudo junto e repito que toda a arte de Cuzor é sublime.

Ao nível da edição, o álbum todo é mais um excelente trabalho da Ala dos Livros.
Tudo muito bom nesta obra!
 
Avaliação:

 
 

24 abril, 2024

Leituras: A Estrada, de Manu Larcenet

Não escrevo sobre as minhas leituras tantas vezes quanto o poderia desejar, mas por vezes há obras cujo prazer de leitura é tão grande, que não temos como evitar fazer. Esta é uma delas.

Do mesmo autor, Manu Larcenet, que nos brindou anteriormente com o magnifico Relatório de Brodeck, já editado em português pela Ala dos Livros, temos agora, pela mesma editora, A Estrada, a adaptação gráfica do aclamado romance de Cormac McCarthy. 

Uma história que se pode resumir em poucas palavras: a jornada de um pai e filho ao longo de uma estrada de destino incerto, atravessando um mundo devastado onde a luta pela sobrevivência é diária e feita de desconfianças. Enganadoramente simples, a premissa convida à reflexão profunda sobre a essência do ser humano.

Mantendo-se fiel ao romance original, a mais-valia de Larcenet é apresentar-nos mais uma obra absolutamente irrepreensível, com a sua extraordinária capacidade de capturar graficamente a essência humana com um toque dramático de realismo. A atmosfera da história é intensa e sombria, e é na relação familiar que une os dois protagonistas que reside o coração emocional da obra. Enquanto leitores absorvemos as angústias de um pai que, rodeado de morte, nada mais tem para oferecer ao filho senão a sua determinação em cumprir  a promessa de garantir a sobrevivência de ambos. Na criança vemos uma inocência e uma esperança que desafiam as circunstâncias brutais que os cercam. 

À semelhança do sucedido no citado anteriormente O Relatório de Brodeck, Larcenet transporta-nos aqui, mais uma vez, numa viagem emocional onde o instinto da sobrevivência ameaça a humanidade do homem. Agora num cenário devastador pós-apocalíptico, somos testemunhas do difícil equilíbrio entre a resiliência do adulto e a bondade da criança, que o autor habilmente gere pintando silêncios visuais ao longo de quase toda a narrativa.

O desenho, em linhas ásperas, não é apenas um complemento à narrativa. Recria um ambiente de desolação, onde as cinzas predominam, e a combinação de uma paleta de cores funestas que variam em função dos desenvolvimentos, com utilização de tons mais fortes para retratar momentos de angústia e horror e mais claros para momentos de alívio, é uma parte integral da experiência de imersão na história. O resultado é um retrato gráfico perfeito de desolação e da morte da esperança numa civilização que colapsou, e uma estrada que nos convida a uma introspeção.

Um bem-haja por ter sido a Ala dos Livros a pegar esta obra, pela garantia de qualidade de edição do objecto físico que é o livro. Nota máxima para um álbum que, não obstante ainda estarmos em Abril, é praticamente certo que se encontrará entre as minhas escolhas para as melhores leituras do ano. 

 Avaliação: 


 

07 março, 2024

As Melhores Leituras de 2023

Serve este para reparar a falta comigo mesmo. Para fechar o Balanço de 2023 faltava-me deixar aqui as minhas melhores leituras do ano. A ideia é destacar apenas as “melhores das melhores” leituras que fiz dentro do que se publicou no mercado nacional durante o ano passado, fugindo daquele facilitismo de nomear tudo e todos. Posto isto, digo que foi um mais ano generoso o que dificultou alguma escolha entre os quase trezentos e cinquenta novos lançamentos contabilizados.

É verdade que mais de metade do que foi editado, quer seja pelo desenho, quer seja pelo argumento, não me despertou qualquer interesse ou entusiasmo, possivelmente porque ou não me enquadro no público-alvo daquelas edições ou então simplesmente porque as edições não o merecem. Por outro lado, outras obras há que me encheram as medidas, pelo cuidado na edição, pela qualidade do argumento, pela excelência do desenho. E foram estas as que nos ficam na retina, e que me facilitou depois esta tarefa de escolha. O mais difícil do exercício é o de completar o TOP 9 com a selecção de mais dois ou três álbuns entre uma oferta que se mostrou de grande qualidade. Mas cheguei lá.

São estas as melhores bandas desenhadas de 2023, um tributo à sublime arte de contar histórias em narrativa gráfica, cuja leitura recomendo fortemente:

(mosaico com disposição aleatória)

 

(apresentação das obras por ordem alfabética)

1629 - O Boticário do Diabo… ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta

Sente-se permanentemente a tensão a bordo nesta obra! Na primeira parte de um díptico embarcamos num navio da Companhia Holandesa das Índias Orientais do século XVII, para uma viagem que já sabemos que não vai acabar bem. Baseado numa história verídica, o argumentista Xavier Dorison proporciona um excelente momento de leitura, trazendo-nos com mestria a atmosfera de conflito latente reinante entre uma trágica tripulação, resultante de um jogo psicológico de interesses e de desequilibro de poderes entre os vários protagonistas, ao qual o traço realista de Thimothée Montaigne confere uma dimensão ainda mais negra. Grande expectativa para o segundo volume. A edição é da Arte de Autor. 

Avaliação:


 

Blacksad - Então, tudo cai - Segunda Parte

Começo pelo óbvio: é tudo muito bom no universo antropomórfico de Blacksad! Neste álbum recuperamos a leitura para a segunda e conclusiva parte da mais longa das aventuras. Juan Díaz Canalès embalou-nos para mais um policial bem conseguido numa Nova Iorque onde os fios da construção e da corrupção tecem uma teia que aprisiona a cidade. A riqueza da narrativa centra-se no retrato social perfeito das suas personagens. Um microcosmo de complexidades e contradições. E Juanjo Guarnido brinda-nos (mais uma vez) com o seu traço exuberante e esplendoroso, preenchendo o desenho com múltiplas e deliciosas referências. A história, tal como uma investigação, vai-se descobrindo entre desenvolvimentos e reviravoltas, com o cair das máscaras até desenlace final tão inesperado quanto o destino que aguarda cada personagem. Maravilhosa leitura. A edição é da Ala dos Livros. 

Avaliação:


 

Em Busca do Tintin perdido

Em páginas que são janelas para a alma, Em Busca do Tintin perdido, obra de cariz biográfico do brasileiro Ricardo Leite, é uma ode apaixonada à nona arte! Cada bela ilustração é um sussurro de admiração e cada palavra um tributo. Ao longo de mais de duzentas páginas, seguimos com o autor na sua demanda pelo "bichinho" da banda desenhada. Numa viagem ao interior da sua prolífica imaginação, somos convidados a ser mais do que leitores - somos exploradores de um território onde as múltiplas referências e metáforas são estrelas a seguir e as conversas com os autores do panteão bedéfilo são luzes que iluminam o caminho. Com jogos gráficos que subvertem os habituais cânones da narrativa sequencial, estes são verdadeiras e inspiradas homenagens que o autor presta aos mestres que moldaram o seu sonho. Esta edição de A Seita não é apenas um livro; é um portal para um mundo onde a banda desenhada é a linguagem universal. 

Avaliação:


 

Frankenstein de Mary Shelley

Depois do seu magnifico trabalho com Drácula de Bram Stocker, só podíamos esperar que Georges Bess espalhasse o seu talento em mais uma bela e fiel adaptação de um conto gótico. E aconteceu com este clássico Frankstein de May Shelley. Um resultado cinco estrelas. Um registo num traço a preto e branco, de recorte fino e repleto de detalhes consegue que acentuar a dramatologia de uma trágica história de ambição desmedida e incompreensão humana. A capacidade narrativa do autor permite aqui replicar a empatia do leitor em relação à infeliz criatura. Trabalho fantástico. A edição é A Seita.

Avaliação:


 

Mattéo - Sexta Época (2 de Setembro de 1939 – 3 de Junho de 1940)

Estamos perante o desenlace de uma bela saga que em seis épocas revisitou um quarto da nossa História, numa história de paixão e perda, sacrifício e infortúnio, condicionada pelas emoções de encontros felizes e infelizes. Temos uma narrativa que navega pelos turbulentos conflitos militares do século XX, desde as trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passando pelos ecos da Revolução Russa, até aos clamores da Guerra Civil Espanhola para chegar à segunda Grande Guerra. É neste palco, que o autor Jean-Pierre Gibrat traz-nos a metamorfose de um herói da grande guerra em desertor condenado, na personagem de Mattéo, filho de um anarquista espanhol, um belo estereótipo de todos os sonhadores utópicos que acreditam na bondade e na beleza dos ideais revolucionários. A arte que acompanha é simplesmente extraordinária, uma sinfonia visual pintada com mestria a aguarela, e donde sobressai, mais uma vez, a grande sensualidade das personagens femininas de Gibrat, com grandes semelhança de outras histórias, mas sempre belas de admirar. Magnifica colecção, composta por seis álbuns, selada com distinção pela Ala dos Livros. 

Avaliação:


 

Monster – volume 1

De leitura voraz, estamos temos uma história sinistra e complexa, mas simultaneamente cativante. Aborda questões morais (todas as vidas terão o mesmo valor?) da responsabilidade e das consequências de nossas escolhas. São estas as premissas para a viagem entre as sombras da personagem principal, o médico Kenzo Tenma, aos limites da natureza humana, numa narrativa habilmente explorada por Naoki Urasawa, com um rol de personagens bem estruturados, que evolui freneticamente através de sucessivos desenvolvimentos e ramificações da perseguição a um assassino em série numa Alemanha pós-muro. O desenho num registo clássico é preciso, detalhado e realista servindo muito bem um mangá da categoria seinen. Este é o primeiro tomo de uma colecção composta por volumes duplos, numa excelente aposta da editora Devir. 

Avaliação:


 

Sou o Seu Silêncio – Um Policial em Barcelona

O autor espanhol Jordi Lafebre, que já nos tinha cativado anteriormente com a comédia romântica Apesar de Tudo, regressou agora com um enredo policial. Assume mais uma vez a escrita e o desenho. A história desenrola-se a partir de uma consulta de terapia da extrovertida Eva Rojas, uma jovem psiquiatra com problemas de personalidade. A misteriosa morte de um herdeiro durante uma reunião familiar, naquilo que quase parece ser um clássico para as aventuras do detective Hercule Poirot, é o ponto de partida para uma divertida narrativa, muito por culpa da Eva. É a força desta personagem, com a sua atitude desafiante e ao mesmo tempo sedutora, que nos toma toda a atenção ao longo da história. Pode-se dizer que começa a existir uma imagem de marca de Lafebre: as suas personagens cativantes. De leitura deliciosa. A edição é da Arte de Autor.

Avaliação:


 

Spirou - A Esperança Nunca Morre... (terceira parte)

O terceiro volume de quatro de uma magnifica obra que destaca por uma história impactante, eco da gravidade dos eventos que a moldaram. Em A Esperança nunca morre… o autor Émile Bravo revisita um dos capítulos mais marcantes da história da Bélgica, com a invasão do território pelas tropas alemãs no decurso da Segunda Guerra Mundial. Servindo-se da ingenuidade da personagem do Spirou - aqui fora do registo aventureiro a que estávamos habituados - transforma-o em símbolo de consciência humanista perante o horror da guerra e das suas consequências. É através de Spirou e de um ambíguo Fantásio, que somos apresentados a uma gama de personagens humanos e complexos, cada um lutando com suas próprias batalhas internas e externas. É o drama da ocupação contado com uma sensibilidade e toques de humor que transcendem as páginas. Bravo de uma forma tão emocionante quanto educativa, retrata a esperança em tempos de desespero, a coragem face do medo e a resiliência contra todas as probabilidades. Uma bela e bem conseguida história numa excelente aposta da editora ASA.

Avaliação:


 

Uma Estrela de Algodão Preto

No palco da História, onde o drama da Segunda Guerra Mundial se desenrola, Yves Sente, numa narrativa poderosa, tece uma tapeçaria de emoções humanas - injustiça, orgulho, coragem – numa colagem que transcende o tempo, num conseguido equilíbrio entre diferentes épocas. No ano de 1944, três soldados negros americanos, marginalizados por uma política de segregação vigente no exército dos EUA, mas determinados em honra, oferecem-se como voluntários para uma difícil missão que desafia a morte, de recuperar a primeira bandeira que foi feita para representar os Estados Unidos, e cujas estrelas escondem um segredo que remonta a 1776. É o começo de uma nova frente na história de luta pela igualdade e respeito, onde o horror da guerra é graficamente realista graças ao magnífico desenho de Steve Cuzor (um autor a reter), onde cada traço é uma homenagem à bravura, cada sombra uma meditação sobre a tragédia. Uma história densa e emotiva, que tem tanto de enriquecedora como de envolvente, termina mostrando a trágica banalidade das pequenas conquistas. Soberbo. Uma obra que envolve o leitor. Se tivesse de escolher apenas um álbum, sem hesitação, esta seria a minha escolha de 2023. Primorosa edição com a chancela da Ala dos Livros. 

Avaliação:


 

11 outubro, 2023

Leituras: Uma estrela de algodão negro

Não tenho conseguido ler muita banda desenhada nos últimos tempos, mas que tenho lido, felizmente, têm-me enchido as medidas. E hoje trago uma dessas leituras. Trata-se de álbum que confronta o leitor com uma dura realidade histórica, a questão da segregação racial que sempre dividiu a sociedade americana, e que aqui é representada sob um pano de fundo histórico bem conseguido.
 
UMA ESTRELA DE ALGODÃO PRETO, uma recente edição da editora  ALA DOS LIVROS, é um álbum poderoso. Quando qualquer história mexe com o leitor, então o objectivo do livro realiza-se. Foi este o caso.
 
O nosso já conhecido Yves Sente (ainda no ano passado tivemos deste autor o magnifico A Vingança do Conde Skarbek) tem aqui mais uma narrativa bem construida, combinando elementos reais com ficcionais, e com um tratamento bastante interessante de questões históricas, sociais e culturais. Apresenta ao leitor uma história de guerra, onde sentimentos de injustiça, orgulho e coragem são impulsionados por personagens cativantes.
 
Transporta-nos para o cenário europeu da Segunda Guerra Mundial, onde acompanhamos a difícil missão de três soldados afro-americanos na recuperação da primeira bandeira da União, cujo simbolismo associado se revelava de elevada importância na História do Estados Unidos. Estabelece-se aqui um paralelismo com os chamados Monument Men, uma secção das forças aliadas que teve um papel vital na recuperação e preservação de obras de arte e tesouros culturais durante a Segunda Guerra Mundial, crucial para preservar a herança cultural e histórica da Europa. Sente não se esquiva em dar o papel principal a estas três personagens, em especial o soldado Lincoln por quem sentimos uma natural empatia, para abordar uma dura realidade: a segregação racial vigorava em 1944 no exército dos EUA. 
 
E depois temos a arte de Steve Cuzor. Para quem o conhece já sabe ao que vai; para quem como eu não conhecia (teve uma pequena participação a meias no álbum Go West Young Man, que não deu para avaliar bem) acreditem que é uma bela surpresa. Dono de um traço limpo, elegante extremamente  realista, trabalha muito bem todos os diferentes cenários (brutal o desembarque na Normandia) e intervenientes da narrativa, é aqui muito muito bem secundado pela colorista Meephe Versaevel que com as suas cores monocromáticas particularmente cuidadas e contratantes definem ambientes, proporcionando um deleite visual ao longo de todo o álbum.

Em resumo, uma história densa e emotiva, que tem tanto de enriquecedora como de envolvente. E há toda uma atmosfera visual que dá um verdadeiro sabor à narrativa. O desfecho trágico é inesperado e acabo a leitura com um murro no estômago. Sem dúvidas, temos aqui um dos álbuns do ano!
 
A edição da Ala dos Livros é primorosa como aliás é apanágio desta editora. Álbum duplo que reúne os dois volumes que compõem a história, que é servida no formato de capa dura e nas generosas dimensões de 31x23 que dificilmente não deixam de agradar ao leitor de bd franco-belga.
 
Avaliação: