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17/08/2025

Com sabor gótico-vitoriano

 Tales From Nevermore

 


Devo confessar que dizer que sou pouco adepto do género “Terror” é manter na incerteza o que o advérbio realmente significa para mim nesta circunstância. Dizer que sou pouco é muito pouco.

 

Para mim, claro está, o “Terror” é quase pornográfico no sentido que é sempre a mesma coisa com umas quantas variações que permitem afirmar diferenças. Parece que o objectivo, ao invés do excitar, é assustar, criando aqui e ali uma sensação de desconforto e de pânico.

 

Claro que me vão falar do Saw e da inventividade daquelas maquinetas de decepar, triturar, cegar e sufocar. É verdade! São muito bem pensadas. E…?! Ou talvez me lembrem da saga do Pesadelo em Elm Street e do assassino que aparece em sonhos e que os transporta para a vida real, Freddy Krueger. Ou do Sexta-Feira 13 ou da Freira ou… ou… ou… Lamento, mas na base, para mim são todos iguais, tendo apenas o objectivo de assustar ou provocar o grito.

 

Talvez resida aqui, no grito, a minha nenhuma afinidade com o género. É que tinha uma amiga que ia ao cinema com o meu grupo da adolescência. Não só gritava desalmadamente à mínima cena “de susto”, como se agarrava repentinamente a quem estivesse ao seu lado. Conseguia sempre assustar mais do que o próprio filme. E eu, talvez tenha ficado traumatizado, sendo que a terapia nesta fase já vem tarde.

 

E, no entanto, há obras que são classificadas como sendo de terror e conseguem ultrapassar o género literário. É o caso de Drácula, o romance epistolar de Bram Stoker, ou o Frankenstein de Mary Shelly, A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe, o Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson. Curiosamente, todas elas se inserem no movimento gótico do século XIX e todas parecem ter um sabor vitoriano, embora a obra de Shelly anteceda a subida de Vitória Eugénia ao trono britânico. Mas também uma criação mais moderna como é Hellboy de Mike Mignola ultrapassa a classificação de terror que lhe foi atribuída e é mais uma magnífica série de aventuras repleta de monstros e demónios que têm o destino do mundo nas mãos. Curiosamente, um dos spin-off da série, Sir Edward Grey, mergulha também num ambiente gótico e vitoriano, sendo o personagem central um investigador do paranormal.

 

Falar destas obras e não mencionar O Corvo, também de Allan Poe, seria uma injustiça. Até porque é um corvo, o Vincent, que mais que um narrador, é o guia que nos leva pelos seis contos que compõem Tales From Nevermore, a obra da autoria de Pedro N. e de Manuel Monteiro que a Ala dos Livros publicou recentemente.

 

Sem gritos ou sustos…

 

 

Vamos às histórias!

 

Como já se disse, são seis histórias curtas que nos são apresentadas ao jeito de antologia pela dupla Manuel Monteiro e Pedro N. Na verdade, a dupla assina os contos 2, 4 e 6, sendo que o argumento está a cargo de Manuel Monteiro e o desenho é da lavra de Pedro N. Já os contos 1, 3 e 5 são da inteira autoria de Pedro N. que alia o talento artístico ao da escrita.

 

Não irei, desta vez, fazer um qualquer pequeno resumo de cada uma das histórias pois seria a melhor maneira de estragar o efeito que provocarão no leitor. Por outro lado, posso e vou salientar aquilo que torna esta obra em algo coeso e bem orquestrado.

 

Desde logo, as diferenças narrativas entre os dois autores são óbvias. Enquanto sou tentado a classificar as diferentes narrativas de Pedro Nascimento como estando mais próximas do estilo do terror gótico-vitoriano, já as de Manuel Monteiro inserem-se num estilo mais directo e contemporâneo. E de nenhuma forma afirmo isto no sentido de crítica negativa. Antes pelo contrário. O leitor tem assim duas vozes distintas, num mesmo livro, a contar-lhe diferentes histórias. De algum modo, saímos enriquecidos desta leitura. Ainda para mais porque, de forma inteligente, as histórias surgem intercaladas em termos de autoria, o que permite experimentar diferentes cadências narrativas.

 

Por outro lado, não esperem ver em Tales From Nevermore o gore ou splatter tão apreciado em certos filmes de terror. Aqui, quando há sangue ou mutilações é porque são “necessárias” à progressão narrativa. E, mesmo assim, em termos gráficos nem sempre são explícitas, recorrendo-se ao contraluz ou a sequências gráficas quase abstractas, como acontece respectivamente no conto Lisandra e em A True Angel.

 


Outro elemento de coesão da obra é o facto de todos os contos terem o chamado twist ou reviravolta final. E no caso de Tales From Nevermore, a reviravolta é mesmo final. Desengane-se o leitor se pensa que as histórias parecem resolvidas a algumas pranchas do fim. O melhor é aguardar pela reviravolta da reviravolta – sempre inventiva e desconcertante.

 

Por fim, o elemento de coesão mais evidente é o elo de ligação entre os contos – o corvo Vincent. É ele o nosso anfitrião no cemitério de Nevermore, levando-nos de campa em campa, passando por jazigos e mausoléus, dando voz àqueles que estão aí sepultados e às suas histórias. E se imaginarmos a voz e a dicção de Vincent, só o podemos fazer trazendo à lembrança Vincent Price. Já agora, num breve aparte, este corvo Vincent que lembra o “Raven” de Edgar Allan Poe que crocita incessantemente “nevermore”, remete-nos também para S. Vicente, padroeiro de Lisboa que teve a embarcação que trouxe o seu corpo para a capital acompanhada por dois corvos. E ainda para o bem conhecido herói português de banda desenhada O Corvo que tem como alter-ego, precisamente, Vicente.

 

O interessante nos momentos em que surge Vincent, no começo e fim de cada conto, é que não só estabelece o tom da narrativa como nos oferece uma certa moral justificadora das acções.

 

Em termos dos argumentos, é notório que os dois autores tiveram o cuidado de criar uma ambiência que passa de conto para conto. E tal não é coisa pouca, pois cada história não podia ser mais diferente da anterior. E, no entanto, o leitor sente aquela estranha unidade, a tal coesão que nos permite regressar a Nevermore em busca de mais narrativas.

 

Quanto à arte realista de Pedro N., em vários momentos lembra aquele traço detalhado dos ilustradores do século XIX que sombreavam e davam texturas através de diferentes tramas de traços. Esta técnica não só dá ao leitor a percepção de pormenor intrincado como, de igual modo, proporciona uma experiência visual que nos remete para a ilustração oitocentista – da qual um dos expoentes máximos foi Gustave Doré.

 

Particularmente bem conseguidas estão as cenas cuja composição é mais complexa. E é aqui que Pedro N. melhor mostra o domínio das sombras e das tramas, como se pode verificar na imagem seguinte retirada do conto A True Angel.

 


Mas as melhores pranchas (nem todas) estão reservadas para Vincent e é nelas que Pedro N. mostra o melhor da sua arte. Arte que casa na perfeição com o discurso directo de Vincent para com o leitor, criando um ambiente intimista e, por isso, envolvente. Nas páginas de Vincent, o leitor sabe sempre que vai participar de algo e, inclusive, que vai ser julgado pela leitura que faz de cada conto.

 

Uma nota ainda para as homenagens (penso que o são) que Pedro N. presta a dois artistas gráficos contemporâneos: Frank Miller e Georges Bess. Do primeiro, autor sobejamente conhecido de Daredevil, O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Sin City e 300, Pedro N. adopta o seu traço nervoso para criar o frontispício do conto Lisandra. Do segundo, autor conhecido em Portugal pelas obras Drácula, Frankenstein e O Corcunda de Notre-Dame, Pedro N. utiliza o seu tipo de traço e composição usado em Drácula para criar o frontispício de Family Ties.

 

Em resumo, Tales From Nevermore tem potencial de série e ambiência num género muito popular, o terror. Os seis contos estão escritos de forma inteligente e oferecem-nos sempre uma reviravolta sucedida por uma derradeira reviravolta. O traço de Pedro N., para além de eficaz, é realista e detalhado.

 

A edição da Ala dos Livros, como é hábito da editora, é muito cuidada. A capa é efectuada com um cortante central que cria o efeito de moldura. Para além disso, tem gravação a seco em alto relevo na tela preta. O efeito é o de um grimório ou de um livro que se mandou encadernar como peça única. O pormenor do fitilho negro também ajuda ao efeito.

 

Uma boa estreia da dupla Manuel Monteiro e Pedro Nascimento… com sabor gótico-vitoriano.

 

Por Francisco Lyon de Castro. 

 

 



11/08/2025

A leitura de HOKA HEY!

Entre as obras que até agora se destacam no nosso mercado, HOKA HEY! - na magnifica edição portuguesa da ASA - impõe-se como uma daquelas leituras de leitura obrigatória. Logo à primeira vista, salta o grande formato de edição, de generosas medidas, papel de qualidade, porque o traço e a cor do desenho assim o merecem. A imagem na capa, de um índio a cavalo de arma na mão, pode sugerir um western clássico, mas na verdade a obra remete-nos mais para um pós-western.

Estamos em finais do século XIX e o Oeste americano encontra-se conquistado, e o que resta são cicatrizes profundas. As derradeiras tribos nativas, vencidas, encontram-se confinadas às reservas e submetidas a políticas de aculturação. As crianças nativas, separadas à força das suas famílias, são reeducadas segundo os padrões euro-americanos. É nesse cenário de perda, mas também de resistência que o francês Neyef conta-nos uma história de vingança, que é, ao mesmo tempo, de descoberta e de libertação.

No seu estilo gráfico, o autor combina um traço que cruza realismo com uma certa estilização, no qual acrescenta um belíssimo trabalho de cor, criando assim um álbum com uma identidade visual própria. 

A narrativa acompanha um pequeno grupo de índios renegados e um irlandês com um passado doloroso. Pelo caminho resgatam Georges, um jovem Lakota arrancado à sua tribo e reeducado como branco, que se vê dividido entre a sua condição e a vontade de se descobrir ao lado dos seus novos companheiros. É este improvável quarteto, composto por personagens fortes que nos cativam, com quem cavalgamos em frente numa viagem sem retorno e com um final inevitável. São as conversas entre estas personagens, nas quais se cruzam memórias, confissões e silêncios, que servem de fio condutor, enquanto avançamos pelos cenários melancólicos das belas paisagens das pradarias e florestas americanas. O ritmo é pausado até a narrativa explodir com vários momentos de violência crua, onde cada gesto tem uma consequência.

HOKA HEY! é de leitura bela e intensa até ao seu final. Neyef entrega-nos uma obra equilibrada, onde a dureza dos factos históricos que nos recorda a responsabilidade do opressor, se mistura com a beleza implacável da paisagem, e onde personagens feridas encontram - ou perdem para sempre - a sua redenção. Sem dúvida que o autor, até agora inédito por cá, tem aqui um excelente cartão de visita para conhecer o seu trabalho. Cinco estrelas. Sem hesitar. 

A minha avaliação:


 

04/08/2025

A leitura de O MEU IRMÃO

Num ano marcado (novamente) pelo lançamento de belas obras, a leitura de O MEU IRMÃO de JeanLouis Tripp, edição da ALA DOS LIVROS, faz inteiramente justiça a isso. E começava por aqui, talvez pelo mais fácil, pela magnifica edição. Irrepreensível!
 
Não é a primeira vez que esta editora faz isto. O resultado de tanta atenção no pormenor resulta numa declaração de amor do editor à obra. O livro, que vale mais que o somatório das páginas que comporta, torna-se um objecto de admiração e exibição. Ao folhear sentimos uma reverência à obra e ao leitor: lombada em tecido, papel denso e generoso, um caderno de extras onde o autor abre a porta da sua dor e memória e o pormenor de um marcador em fita de cetim roxa - cor da dor perda e que também simboliza a tristeza profunda. Não são todas as obras que merecem este luxo, mas esta merece. Não estamos perante apenas um livro.
 
Com o desenho da capa, história ganha desde logo uma envolvência com contornos solenes antes da sua leitura. Não é fácil ler esta obra; muito menos terá sido fácil escrevê-la. Tripp oferece-nos um relato de coração aberto: na sua juventude, perdeu o irmão mais novo numas férias de Verão. Ser narrador de uma tragédia desta dimensão revela bem a sua necessidade de partilha e apaziguamento. Fá-lo de uma forma sóbria, com uma narrativa bem construída, num relato na primeira pessoa, assente em factos, emoções e sentimentos. Leio aqui um sincero e comovente exercício de exorcização de fantasmas e culpas.
 
Temos a violência do acidente, num desenho realista graficamente brutal, mas ainda mais violento é o que segue - das horas intermináveis à espera de ajuda, dos rostos de revolta, da procura das palavras, do esgotamento das lágrimas, da consternação e tristeza. E da vida que se seguiu. Do tempo para sempre marcado por um “depois”.
 
O autor expressa muitas vezes a dor, página após página, apenas pelo desenho porque sabemos que nestes momentos não há palavras certas.
Não se morre a meio de umas férias de Verão quando se tem onze anos”. Mas o Gilles morreu. 
 
O MEU IRMÃO é uma homenagem indelével à fragilidade da existência e à força da memória.
É um dos mais belos exercícios de narrativa gráfica que já li. Cinco Estrelas! 
 
A minha avaliação:

 
 

16/07/2025

Quase disse Descartes

 Cogito Ego Sum


(Deixem-me começar com esta imagem de modo a não espantar o raio do algoritmo)
 

Não tenho como objectivo tornar este texto pesado, mas é inevitável referir-me a René Descartes e ao seu “livrinho” O Discurso do Método. Quanto mais não seja porque o livro acerca do qual agora se escreve corrompe por completo a frase que deixou o filósofo francês famoso até ao fim dos tempos. Cogito ergo sum, que em português se cristalizou como “penso, logo existo”, passa agora, desavergonhadamente, a “cogito ego sum”, ou seja “penso, eu sou”.


E se a frase parece falha de algo, até se aproxima mais da original de Descartes que em francês escreveu “je pense, donc je suis” (eu penso, logo eu sou).


Apartes filosóficos, vejamos agora uns quantos apontamentos do foro neurobiológico-filosófico.


O conhecido neurocientista António Damásio, na sua obra O Erro de Descartes, partilha com o filósofo francês a teoria do dualismo mente/corpo. Mas assinala que o erro do primeiro foi considerar apenas que o cérebro foi criado acima do corpo quando na verdade foi também criado a partir dele e junto com ele. O pormenor parece de somenos importância, mas é definidor do funcionamento da mente ao nível neuroanatómico.


Significa isto, caro leitor, que corpo e mente só funcionam tendo consciência de si. Significa isto que estamos mais próximos de desvendar os mistérios da mente humana.


Significa isto que Luís Louro, ao criar o título Cogito Ego Sum, conseguiu fazer o que faltou a Descartes – ligar a mente e o corpo como seres simbióticos.


Claro que também há quem diga que o Louro só criou este título porque estava na altura a trabalhar para a revista Ego. São as chamadas “bocas da reacção”. Quero crer que a mente de tão reconhecido autor tem uma profundidade que outros querem denegrir.


Dito isto, o livro de que vos vou falar compila os dois volumes de Cogito Ego Sum editados in illo tempore, acrescentando-lhe vários extras numa cuidada edição levada à estampa pela editora Polvo.

 

 

Vamos à história!


Não! Não vamos nada à história porque trata-se aqui de 22 contos curtos, sem qualquer ligação entre eles que não seja aquela relacionada com o erotismo ou com o s€x0 (quase) explícito.


Também há muita nudez para todos os gostos e todos os géneros. É, por esta razão, uma obra que pode ser considerada, de tão inclusiva, perfeitamente dentro do espírito “woke”. Até aqui, aliás como sempre, Luís Louro esteve à frente do seu tempo.


Mas o homem vai ainda mais além, tal como o Buzz, e consegue sublimar a beleza e a atracção desprezadas dos gordos. Tal proeza é corporizada na insaciável guerreira Zobi.

 

 

 


Por outro lado, é reconhecido a Luís Louro o seu desmesurado amor pela natureza. Factor que até o levou, há uns anos, a retirar-se para uma zona campestre nos arredores de Queluz. Neste sentido, a comunhão entre homem e animal é um dos laços que considera sagrados nessa sua paixão por Gaia. Atentem, por isso, às histórias número 15 e 22. Nelas, a comunhão dos seres vivos com a natureza ganha uma nova relevância, o mesmo acontecendo com a guerra dos s€x0s.

 

 

Mas não pensemos que Luís Louro alcança neste Cogito Ego Sum o equilíbrio perfeito entre os s€x0s. Antes pelo contrário! O seu lado woke-feminista fá-lo criar uma galeria de personagens impressionantes na qual o protagonismo e a originalidade recaem a favor do “belo s€x0”. Os homens, esses pobres coitados, são quase sempre meros figurantes.


Temos uma batgirl de mamocas avantajadas, uma capuchinho vermelho com ideias muito próprias acerca do conto de Charles Perrault, uma Wendy que esqueceu o seu Peter, uma guerreira viking que lembra a Red Sonja, “centauras”, “faunas”, fadas e sereias, a tribo das mulheres guerreiras, uma Pamela Anderson em início de carreira e várias mãos cheias de mulheres comuns, bem nutridas, desnutridas, curvilíneas ou retas como uma via verde.


No meio desta imensa galeria feminina há, no entanto, dois homens que se destacam: o famoso John Holmes e o nosso conhecido Tintin que faz uma breve, mas firme aparição.

 


Se há coisa comum entre as histórias são os finais; são todos diferentes…! E ainda bem! Mas, sobretudo, são todos inesperados, o que cria no leitor a expectativa para o desfecho seguinte. É uma espécie de suspense sem crime ou de um terror sem susto. Sabemos que vai acontecer, sabemos quando, mas não sabemos como nem porquê.  E este factor é importante pois torna a leitura rápida e compulsiva, chegando o leitor ao final do livro satisfeito, embora querendo mais.


Afinal, é da natureza humana o inconformismo e o querer mais. E mais, num livro desta natureza, não é algo estranho às mais afoitas e afoitos.

 


É perceptível (até porque já o ouvi dizer isso) que Luís Louro teve um grande prazer em escrever e desenhar as 22 histórias que compõem o Cogito Ego Sum. Desde logo porque permitiu-lhe viajar por universos muito diferentes, desde o espaço sideral ao quarto mais recôndito perdido na cidade, passando pelas paisagens gélidas do norte europeu e pelos bosques mágicos de Avalon. Para quem respira desenhos, a diversidade é a grande sedutora.


Do mesmo modo, essa diversidade serviu para aprimorar a escrita e dominar a arte da história curta, que começara a desenvolver em Jim del Monaco.

 


Há que dizê-lo, aos que eventualmente ainda não saibam, que a presente edição de Cogito Ego Sum é também um acto de amor a vários níveis.


Arrumemos primeiro a parte sentimental.

Quando o primeiro volume de Cogito Ego Sum foi lançado no ano 2000, Luís Louro dedicou-o à sua filha mais nova, a bebé Rebeca Louro, de dois anos. Agora, coube à adulta Rebeca Louro prefaciar a obra do pai num texto em que sobressai o nível elevado do seu QE.


Já à Verónica Louro, filha mais velha e também ela dada às artes do pai, coube a realização do retrato digital de Luís Louro.


Ou seja, uma filha abre a obra e a outra fecha-a. Para um pai, o orgulho não poderia ser maior, como se contacta na dedicatória feita para esta edição.


Depois, o amigo Hugo Pinto escreve um interessante texto analítico da obra e do homem que intitulou “Penso, logo executo”.


E por fim, ainda a nível sentimental, o empenho que o editor e amigo Rui Brito colocou na produção deste álbum.


Cogito Ego Sum ainda brinda os leitores com alguns extras, se bem que os extras maiores estejam reservados às maravilhas de silicon valley (eu cá prefiro o natural valley).


Assim, temos uma ilustração inicial criada propositadamente para esta edição. Guardas iniciais e finais que reproduzem, respectivamente, as capas originas de 2000 e 2001, uma selecção de algumas ilustrações e uma biografia extensa que só não está completa porque Luís Louro não é homem para estar parado. Aliás, se algum maluco houver que se atreva a escrever uma obra biográfica acerca do autor, saiba desde já que, no dia seguinte à publicação já estará desactualizada.


Cogito Ego Sum é uma obra essencial para todos os leitores habituais de Luís Louro e para todas as jovens gerações de novos fãs, excepto a geração actual dos inocentes leitores do Corvinho.


Tirando os penteados de algumas das protagonistas, é um livro que resiste ainda em absoluto ao crivo cruel do tempo.


Para quem tem as edições antigas, para quem há anos houve falar sem conseguir comprar, ou para quem leu este texto e sentiu-se tantalizado… perdão, tentado a comprar, não hesitem…!


Cogito Ego Sum… como quase disse Descartes!


Nota: não julguem negativamente este vosso escriba quando lerem o vocábulo “s€x0”. Não é erro! É apenas uma tentativa, muito provavelmente inglória, de manter este texto activo na internet. É que, hoje em dia, até os malfadados algoritmos são woke. Que enjoo!

 


 por Francisco Lyon de Castro

 

30/06/2025

A Arte Sublime

 Tomahawk

 

 

Para muitos, pensar na história mais antiga dos Estados Unidos é pensar em “índios e cowboys” e no século XIX americano. Para outros, é recuar ao século anterior e a 4 de julho de 1776, o Dia da Independência. Mas, na verdade, a história ocidental daquela parte do mundo começa com a chegada do navio Mayflower e dos seus 102 “peregrinos” e 30 tripulantes a Cap Cod, Massachusetts, em Novembro de 1620.

 

É verdade que os EUA têm pouco mais de 250 anos de existência. Mas a história da região com influência europeia remonta a mais de 400 anos atrás, ao momento em que a Virginia Company de James I foi encarregada de colonizar a costa leste da América, baptizada de Virgínia. É precisamente nesta altura que se dá o famoso e muito deturpado episódio de Pocahontas.

 

Ligeiramente contextualizados, entremos agora no período que nos interessa, o da Guerra dos Sete Anos (1756 a 1763) no seu ano de 1758. Esta é uma guerra que se pode chamar de global pois opõe a Prússia e a Áustria no espaço germânico e a Grã-Bretaha e a França por terras da América do Norte e da Ásia, sendo Portugal aliado dos ingleses e Espanha dos franceses. No entanto, é chamada de Guerra Franco-Indígena pelos americanos e Guerra da Conquista pelos franco-canadenses.

 

Os britânicos valiam-se a si próprios e tinham dois milhões de pessoas no seu território. Já os franceses, não passavam de 60 000 e dependiam da ajuda dos indígenas.


 

É neste ambiente bélico que vamos ver desenrolar-se a história de Tomahawk, o novo livro de Patrick Prugne que a Ala dos Livros acaba de publicar numa edição muito cuidada que inclui um generoso caderno de extras contendo 22 páginas de esboços e belas aguarelas. 

 

Vamos à história!

 

Junho de 1758. Vale do rio Ohio. Um enorme urso-pardo caça um salmão. Squando, membro da tribo Abenaki (grupo Algonquino) observa-o a uma distância prudente, protegido pela floresta virgem. Assim que se sente seguro, apressa-se a ir para a sua canoa e a remar para longe.

 


Uma nova fornada de soldados acaba de chegar ao Forte Carillon. O sargento que os recebe promete-lhes mosquitos e miséria. Entretanto, o padre Montreuil encontra Jean Malavoy a curar uma bebedeira mesmo ao lado da pocilga. Acorda-o com um balde de água e lembra-lhe que ele agora é um miliciano ao serviço do rei de França. Mas Jean diz-lhe que a sua guerra é outra e envolve um urso-pardo de tamanho fora do vulgar e ao qual falta uma garra.

 

Abequa fica surpresa por ver Jean. Afinal, o seu homem tinha desaparecido há três dias. Ela leva-o de imediato para o seu tepee e promete-lhe uma noite inteira de amor.

 

Na manhã seguinte, Squando chega ao Forte Carillon e corre para a tenda da irmã, onde prevê encontrar Jean. Diz-lhe que avistou o Urso na cascata das Três Forquilhas. Sem hesitar, o homem pega nas suas armas e salta para uma canoa. A partir daquele momento será considerado um desertor.

 

Mais tarde, uma patrulha do Forte Carillon calcorreia a floresta em busca de ingleses. Por breves momentos, param para descansar e regressar depois ao forte. Mas os momentos são ainda mais breves do que esperavam, pois são atacados selvaticamente, por todos os lados, por um grupo de Mohawks liderado por um major highlander e seus soldados. Dos franceses, apenas escapa um jovem soldado.

 


Perseguido pelos Mohawks e com um terrível destino traçado, o jovem é salvo por Jean Malavoy. Desse momento em diante, os dois vão no encalço do grande urso. Jean só pensa em vingar-se da besta que lhe matou a mãe… mas os Mohawks seguem no seu encalço.

 


Antes de mais, há que dizer que não é estranho a Patrick Prugne este ambiente de pré-revolução americana bem como o de pós-revolução. Com o argumentista Tiburce Oger já tinha publicado Canoë Bay e depois, a solo, dá continuidade às suas “sagas índias" com Frenchman, Pawnee e Iroquois. É antes de Pocahontas (editado em Portugal também pela Ala dos Livros) que realiza este Tomahawk, e regressa ao Novo Mundo.

 

A narrativa faz-nos mergulhar em duas tramas distintas. A primeira, num momento muito específico da história da América do Norte. A outra, na história de vingança de Jean Malavoy contra um urso grizzly. Mas o entrecruzamento das tramas é inevitável.

 

Como já foi dito acima, estamos no período da Guerra Franco-Indígena ou Iroquesa (1754-1763). Guerra esta que opõe as colónias francesas e as britânicas da América do Norte, sendo que cada lado é apoiado por distintas tribos nativas. Em Tomahawk, a tribo dos Abenaki apoia os franceses e a tribo iroquesa dos Mohawk está ao lado dos britânicos.

 

Os combates sangrentos desenrolam-se sobretudo ao longo das fronteiras da Nova França (actual Canadá) com as colónias da Virgínia até à Terra Nova, mas concentram-se aqui nas imediações do Forte Carillon no ano de 1758.

 

Em paralelo, corre a história de Jean Malavoy, miliciano francês que deserta do forte para tentar saciar a sua sede de vingança sobre um enorme urso que lhe matou a mãe muitos anos antes. É esta “pequena” história de vingança que vai fazendo avançar a narrativa para os dois desfechos finais – o resultado da luta entre homem e besta (seja ela qual for) e a convergência da trama para a batalha do Forte Carillon em 8 de Julho de 1758, a mais sangrenta da Guerra Franco-Indígena.

 

Contudo, o mais interessante é que da batalha em si, o leitor tem uma única imagem, de página dupla, mesmo no fim da obra.

 


O que interessa a Patrick Prugne é o ambiente que circunda o forte durante os dias que antecedem a batalha. As patrulhas que ambos os lados fazem naqueles territórios selvagens do Novo Mundo; as condições difíceis da vida militar; a rivalidade entre Abenakis e Mohawks; a crueldade da patrulha de escoceses das Terra Altas; a vida comum entre franceses e abenakis; a religião e até a miscigenação.

 

E o leitor ainda consegue aperceber-se que enquanto os franceses tentam integrar-se respeitando os nativos, os ingleses praticam mais frequentemente “a lei da bala”.

 

Tudo isto é tratado sem qualquer prédica e surge naturalmente por entre as aguarelas sumptuosas de Prugne.

 


Tal como é importante o ambiente vivido nestas terras selvagens do Novo Mundo, é igualmente importante o rancor visceral que Jean tem pelo urso e que o leva a seguir-lhe a pista e a, eventualmente, matá-lo. As motivações que movem o protagonista através da sua demanda pessoal, assim como a relação entre homem e animal, são dissecadas de igual maneira através do colonizador e da sua confrontação com os ameríndios. No fundo, é o ódio, o rancor e a ambição desmedida que marcam a génese da colonização do Novo Mundo, ainda bem longe da conquista do Oeste Selvagem por ondas sucessivas de emigrantes das mais diversas nacionalidades.

 


Quanto à arte, não há melhor palavra para a descrever que “sublime”.

 

O traço do carvão de Patrick Prugne é diluído na beleza das suas aguarelas que aplica directamente em cada página. O verde, o azul e as suas variantes dominam a paleta e transportam o leitor para os territórios selvagens e verdejantes de então. As florestas acidentadas e rochosas, os rios que correm limpos e livres, as árvores que descansam nos locais onde caiem, os cervos que pastam despreocupados e o urso, o grande grizzly solitário que domina majestático toda a paisagem que a vista alcança, estes são os verdadeiros personagens de Tomahawk.

 

 

Poderia pensar-se que Prugne, com arte tão delicada, não conseguiria ter a mesma mão nas cenas de acção ou de crueldade. Mas ele consegue magnificar de igual modo momentos doces e momentos violentos. De qualquer modo, a experiência é de tal forma imersiva que quando o sangue é derramado com violência, acaba por ser absorvido pela beleza extrema da paisagem.

 


A batalha do Forte Carillon não só foi a mais sangrenta das travadas na Guerra Franco-Indígena, como foi também aquela que poderá ter pronunciado a derrota inglesa pelos americanos em 1776. Entre soldados, milicianos e ameríndios, 3600 do lado francês derrotaram 15000 do lado britânico.

 

A narração de Patrick Prugne é, de maneira quase invisível, instrutiva e pedagógica, não deixando por isso de cativar o leitor com a história de vingança de Jean Malavoy sobre o urso assassino.

 

A beleza das suas aguarelas é incontestável e consegue transportar-nos com grande realismo para os territórios selvagens da Nova França de meados do século XVIII.

 

E quando, meu caro leitor, achamos que a história chegou ao fim, eis que surge um caderno de extras de 22 páginas que, em parte dá continuidade à história. Pois é nele que ficamos a saber do destino final de Jean Malavoy, de Abequa, de Squando e até do jovem soldado salvo por Jean. E ficamos também a saber o resultado da batalha de Forte Carillon e do que lhe aconteceu um ano depois. E, para lá da história, temos estudos de personagens e de animais, esboços de pranchas, uma boa diversidade de aguarelas e muito mais.

 

Tomahawk está à altura das expectativas criadas pelo autor através das suas obras anteriores. O prazer e a emoção são absolutamente alcançados pela leitura desta obra que tanto nos enche a vista como o cérebro.

 

É a arte sublime ao serviço dos Territórios Selvagens…

 



 Por Francisco Lyon de Castro

 

 

26/06/2025

Para quê o Dr. Google?

 

Aii! A dor também se trata com humor

 

Nestes tempos em que o défice de atenção parece ter invadido irremediavelmente o cérebro da maior parte da população mundial que fica com dores de cabeça se o último vídeo viral do tiktok tem mais de 30 segundos, nada melhor do que fazer uma análise relâmpago de um livro (coisa que nunca fiz). Mesmo assim, para os mais empedernidos fãs daquela rede (?) social (?) em forma de app, devo advertir que terão de multiplicar 30 segundos por si próprio várias vezes de modo a chegarem ao derradeiro ponto final.

 

Contrariamente ao que foi dito, há algo na internet que consegue captar a atenção até do maior deficitário dela. É o Dr. Google. “As pestanas não me param de tremer. Será que sofro de obstipação?”, pergunta a vizinha do 3.º esquerdo ao famoso Dr. virtual. Ou, a mais comum “Não consigo evacuar. Será que vou ficar cego?”

 

O certo é que o Dr. Google trouxe confiança à população mundial, que se acha agora à altura, e mesmo acima, da classe médica. Eu próprio, com a ajuda do meu amigo Dr. Google, já diagnostiquei vários cancros a amigos.

 

Ora, entre tiktoks e Dr. Google, por vezes é publicado algo fora da caixa que tendo como premissa o assunto sério da saúde, a leva ao leitor de forma humorística, mas séria. Bem sei que parece um contrassenso. Ou se é sério ou se faz humor. Não nos podemos esquecer, no entanto que o humor é uma coisa séria.

 

Se dúvidas houver, é lerem Aii! – A dor também se trata com humor, da autoria do Dr. Patrick Sichère e de Achdé, o vosso conhecido desenhador de Lucky Luke, que acaba de ser publicado em Portugal pela Ala dos Livros.

 

 

Vamos à história!

 

Pois… não há história! Há sim dois fios condutores. Um é a persistência permanente do Dr. Marcelo Hipócrates que nos leva por uma viagem ao mundo da dor. O outro é isso mesmo, a dor! Mas com humor.

 

Ou seja, uma espécie de fantasma daquele que é, talvez, o mais famoso médico do mundo, o grego Hipócrates, também considerado o “pai da medicina”, vai falar-nos acerca dos diversos tipos de dor: a dor de cabeça, as dores combatidas com analgésicos, a dor de dentes, a dor dos membros fantasmas, a fibromialgia, a dor de costas, a dor no ânus e a dor nos pés. E vai fazê-lo com porções iguais de seriedade e de humor.

 


O humor vai para além dos gags, narrando-se episódios reais que hoje ganham características anedóticas. Tal é o caso, por exemplo, de Luís XIII que, num só ano, levou 215 clisteres. Ou de Lewis Carroll, o criador de Alice no País das Maravilhas, que sofria de fortes enxaquecas com aura – aquelas que criam alucinações. Talvez por isso tenha alucinado na sua obra, criando uma lagarta falante, baralhos de cartas humanoides, uma Alice que vai dos 2 centímetros aos 12 metros de altura, e as famosas festas de não-aniversário, presididas pelo Chapeleiro Louco.

 

O certo é que estas viagens pela dor são nos apresentadas pelo Dr. P. Sichère e por Achdé. E se este último contribui para a seriedade do desenho (e dos gags), o Dr. Sichère é o garante da credibilidade da informação. Ou não fosse ele professor e consultor no Centro da Dor do Hospital Lariboisière em Paris e membro da IASP (International Association for the Study of Pain), entre outras.

 

Participando no argumento é, no entanto, o traço característico de Achdé e a sua criação de movimentos fluídos que conferem à obra um dinamismo que permite assimilar mais facilmente toda a informação científica.

 


A aposta dos autores é inteligente. A dor acompanha o homem desde os alvores da humanidade. E não há ninguém no mundo que não a tenha sentido uma ou outra vez (com excepção daqueles que têm insensibilidade congénita à dor). Nada melhor, para os curiosos, sofredores e apreciadores de humor, do que uma obra que tem a dor como tema.

 

 

 

Para tornar Aii! ainda mais interessante, os autores colocam páginas a dividirem cada capítulo nas quais são apresentadas ferramentas e técnicas antigas que pretendiam apaziguar ou mesmo eliminar a dor, como as tão desejadas trepanações. 

 

Achdé, longe do “seu” Lucky Luke, brinda-nos aqui com uma série de cameos nos quais, para além do seu cowboy de eleição, podemos também encontrar a Harley Quinn, um legionário de Astérix, o Drácula e o Corcunda de Notre-Dame. Acrescente-se uma infindável galeria de figuras históricas ou da actualidade, como Amy Winehouse ou Jimi Hendrix.

 


Aii! é uma obra de vulgarização médica e histórica, na medida que coloca ao alcance de todos informação que o Dr. Google só terá dispersa. Para além disso, fá-lo num tom divertido e acessível.

 

Fico com a sensação que este poderá ser o primeiro de vários volumes sobre o assunto.

 



 Por Francisco Lyon de Castro