Quando nos
faltam as palavras
UF!
Quando nos faltam as palavras, nada como usar uma
onomatopeia. E essa é a sensação que o leitor poderá ter ao terminar a leitura
de um ou outro livro de um ou outro autor.
Mas ter essa sensação duas vezes seguidas com o mesmo
autor é coisa mais rara.
Quando li Um
Oceano de Amor, de Wilfrid Lupano e Grégory Panaccione, foi esse “uf” final
o que senti. A capacidade de os autores cativarem o leitor com a história
simples de um pescador que se perde no mar e da sua mulher que, em terra, não
desiste dele, é algo de extraordinário.
Claro está que, como é apanágio das grandes obras, a
simplicidade é sempre uma arte bem mais difícil do que a verborreia da
complexidade que limita as leituras. É na simplicidade que não raras vezes
descobrimos aquelas ideias que nos fazem interrogar porque não pensámos antes
nelas.
Pois agora, caro leitor, tem de novo a possibilidade
de passar por essa experiência quase epifânica onde é levado à compreensão da
essência de algo, seja lá o que for esse “algo”. O certo é que esta leitura
parece deixar-nos um pouco mais sábios.
Falo da leitura da nova obra de Grégory Panaccione, Alguém com quem falar, baseada no
romance de Cyril Massarotto, e acabada de publicar em Portugal pela Edições
Asa.
E mesmo que não nos revejamos na figura de Samuel, o
protagonista, é inevitável identificarmo-nos com uma ou outra questão
existencialista acerca do curso das nossas vidas.
Vamos à
história!
A janela
da mansarda parece ser a única iluminada da cidade. Lá dentro, as chamas de
trinta e cinco velas num bolo bruxuleiam expectantes. Cantam-se os parabéns a
Samuel e quando este assopra, a mansarda cai na penumbra.
Ele
hesita, bate palmas, dá um gole na garrafa de champanhe, gargalha, come uma
fatia de bolo, dá outro gole e outro, até terminar a garrafa. Na verdade,
Samuel está sozinho no seu pequeno apartamento.
Resolve
telefonar a Armelle, mas esta não o recebe bem. Há oito anos que é a mesma
coisa. No dia do seu aniversário, Samuel telefona sempre a Armelle, embriagado.
E, afinal, já não são companheiros há quase uma década.
Depois
de uma conversa rápida e azeda, na qual Armelle o acusa de não ter ambição, nem
algo que cative uma mulher, ela desliga-lhe o telefone na cara.
Samuel
reflecte por um segundo. Precisa de mais álcool! Agarra a sua katana samurai e
tenta abrir com ela mais uma garrafa de champanhe. Mas as coisa não correm bem
e o líquido borbulhante aumenta dramaticamente a taxa de alcoolémia do seu
telemóvel que entra definitivamente em coma.
Sem
convidados, sem amigos, sem telefone, sem ninguém com quem falar, Samuel
lembra-se que ainda tem em casa um telefone fixo. Contudo, não se lembra de
nenhum número para onde telefonar. Nenhum, não é bem assim! Na memória guarda o
número de telefone da sua casa de infância.
Do
outro lado da linha, surge uma voz de criança. Depois de uma série de
mal-entendidos, chegam à conclusão que ambos se chamam Samuel, têm o apelido
Verdie e um tio brincalhão. Samuel adulto, atónito, não quer crer no que ouve.
Acometido de um pânico estranho, apressa-se a desligar e atira o telefone para
longe.
Samuel
tinha telefonado para a sua infância…
Escrever
sobre a banalidade e, mesmo assim, conseguir cativar a atenção do leitor comum
é algo que não é fácil. Sujeito às minhas limitações culturais (afinal, quem as
não tem?!), lembro-me de repente de duas obras. Uma é a intimista e cândida
novela de Gustave Flaubert, Uma Alma
Simples, na qual se relata a vida banal de uma criada interna de bom
coração. A outra é o aclamado filme de Jean-Pierre Jeunet, O Fabuloso destino de Amélie, um clássico instantâneo de 2001 que
quase dispensa apresentações.
Enquanto
na obra de Flaubert, o quotidiano banal da criada Félicité (nome apropriado
para quem garante a felicidade dos outros) não tem espaço para acontecimentos
extraordinários, em Amélie são esse
tipo de acontecimentos que dão sabor e magia ao quotidiano.
Ora, em
Alguém com quem falar, Panaccione
dá-nos uma maravilhosa mistura dos dois quotidianos. Um banal, seco, sem
esperança. O outro de magia, com perspectiva de futuro.
Num,
temos um Samuel de aspecto desmazelado, entregue aos caprichos de um chefe
explosivo, com uma rotina que o mantém anónimo para o mundo, com excepção dos
jantares que o casal de vizinhos idosos lhe proporciona semanalmente.
No
outro, o Samuel conhece uma colega de trabalho, a Li-Na, por quem se encanta de
imediato e a quem esconde esse encantamento. Mas, mais importante, mantém as
misteriosas conversas telefónicas com o seu “eu” de há 25 anos. Como dois
amigos de sempre, o Samuel grande e o Samuel pequeno passam horas ao telefone
falando de tudo e de nada. E o pequeno vai-se apercebendo que os seus sonhos de
infância não se concretizaram.
São
estes dois Samuel o verdadeiro motor da narrativa e a origem das mudanças no
futuro e no passado. Tornando-se confidentes um do outro, cobram-se atitudes
erradas, sonhos adiados, caminhos mal trilhados. A criança está decepcionada
com o seu “eu” adulto e este aconselha-a em relação ao seu próprio passado. Com
o correr dos dias, o Samuel grande decide retomar as rédeas do seu destino e
recuperar sonhos antigos, como o de ser escritor. Mas o Samuel pequeno também
vai abraçar algumas mudanças…
Grégory
Panaccione adapta o romance epónimo de Cyrill Massarotto de forma brilhante. O
artista está habituado a proporcionar ao leitor obras mudas e emocionalmente
fortes, como são Um Oceano de Amor ou
Un été sans maman. E embora Alguém com quem falar não seja uma obra
sem palavras, o autor consegue mais uma vez fazer vibrar o nervo da emoção.
A
influência da infância na nossa vida adulta, como definidora de personalidade e
da capacidade (ou não) de tomarmos decisões é abordada através do subterfúgio
dos telefonemas para o passado. E nestes, como no resto da obra, a sabedoria da
narrativa está em misturar na proporção certa as emoções e o humor.
A vida
presente de Samuel é trágico-cómica e o seu regresso à infância através
daqueles telefonemas “sobrenaturais” é, não só, a maneira de ele fazer um
balanço dos seus trinta e cinco anos de vida, mas também o modo que arranja
para traçar um futuro mais de acordo com os seus sonhos esquecidos.
A
introspecção equilibrada e, por isso, bem doseada, é tantas vezes a melhor
maneira de abrirmos as portas que nós próprios fechámos. Questionarmos as
nossas ambições, objectivos, desejos e sonhos que antecederam a idade adulta é
um exercício que pode ser revelador. E não precisamos de ter uma linha
telefónica directa para o nosso passado. Mas, para nosso deleite, ainda bem que
os dois Samuel a têm.
Panaccione
adapta o romance com inteligência, suprimindo algumas passagens mais longas e
agilizando a viagem onírica de Samuel. Aliás, a maneira como ilustra as
conversas dos dois Samuel é brilhante, sobretudo quando os coloca em cenários
exteriores imaginários que crescem até ao corte de página e ignoram a
existência de vinhetas. Nestas cenas, são particularmente bem conseguidas
aquelas que integram os protagonistas em ambiências vegetais. Na primeira que
em seguida se reproduz, o leitor até sente um pouco do “Campo de papoulas” de
Claude Monet. Na segunda imagem, os ramos e folhagem da imensa árvore servem
para separar a consciência de Samuel do grande vazio branco que a ladeia.
Nestas
duas cenas ou em outras, é evidente a poesia acrescentada à narrativa, bem como
o aumento gritante da carga onírica. Curiosamente, são estes momentos de
conversa – ou de reflexão – que mais apaziguam o leitor e o tentam conciliar
com o passado.
Na
verdade, todas as sequências telefónicas, muitas vezes num ritmo de ping-pong,
têm tanto de subtil como de revelador, centrifugando passado e presente, e
resultando no inevitável futuro.
O
desenho de Panaccione é sempre uma surpresa. Quem devorou Um Oceano de Amor até pensará estar agora face a outro desenhador.
O certo é que os seus rostos continuam muito expressivos e o foco do autor. Por
vezes, aquilo que considera quase acessório para a narrativa é representado
como um breve apontamento de linhas, mas sempre eficaz. Pode dizer-se que aqui,
o minimalismo anda a par com a exuberância.
Alguém com quem falar tem tudo o que uma boa história deve ter. Uma
narrativa cativante e ligeiramente misteriosa – afinal, não é todos os dias que
conseguimos telefonar para o passado. Um enredo pleno de humanidade que nos
centra na vida e, ao mesmo tempo, nos afasta da descrença e pensamentos
sinistros face ao mundo actual. Um tom que nos faz reflectir. Humor
inteligente. Um desenho eficaz e expressivo. Um epílogo delicioso.
Mas,
sobretudo, tem uma mensagem poderosa. Dependendo da crença de cada um, o
destino é algo que nos ultrapassa ou que está nas nossas mãos. O certo é que,
se não fizermos nada por ele, a probabilidade de passarmos pela vida de um modo
absolutamente banal é a realidade quase certa.
No
livro, a frase que cito de cor – “A criança que eu era não gosta do adulto que
eu sou.” – não é tanto um lamento, mas mais um repto. Não vale a pena
esquecermos os sonhos de infância para pintarmos de cinzento o resto da nossa
existência. Nem todos temos de ser maiores que a vida, mas todos podemos
aumentar a paleta de cores da nossa vivência. Convém guardar num cantinho do
cérebro as tonalidades da nossa infância e, de vez em quando, irmos
revisitá-las e trazer uma ou outra para o nosso presente.
Em
certos momentos, Alguém com quem falar
deixou-me sem palavras.
UF!
Mas
enquanto tenho fôlego, lanço o repto à Edições Asa. Agora que o leitor
português já está habituado a Grégory Panaccione, porque não publicar Un été sans maman?
Por Francisco Lyon de Castro