Os dias, por aqui, tem sido aproveitados para muitas leituras, até porque o ano fica marcado, entre outras, por um número recorde de lançamentos, incluindo de autores nacionais. A produção nacional de banda desenhada foi verdadeiramente incomum, face aos últimos anos, e correspondeu, em 2024, a cerca de 16% da oferta total (os números finais ficam para o habitual Estado da Arte, o balanço que irei aqui publicar nos próximos dias).
E perante tão farta colheita, achei que este ano se justificava a elaboração de duas listas de melhores leituras de 2024: uma referente a autores nacionais e outra de autores estrangeiros. A ideia, como sempre, não é de eleger tudo e todos, mas apenas aquelas que se destacaram pela sua qualidade narrativa e gráfica.
Assim, começo pelos nacionais, e aqui fica o meu top 5 de BD portuguesa de 2024:
- Corvo VII – O Despertar dos Esquecidos (ed. Ala dos Livros)
- Fojo (ed. Kingpin Books / A Seita)
- Lusíadas – Parte I (ed. Levoir)
- Sol (ed. A Seita)
- Atendimento Geral (ed. Escorpião Azul)
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2. Em FOJO, Osvaldo Medina regressa ao papel de autor completo que tão bem vestiu no seu universo Kong. Assume agora a responsabilidade por uma história de tragédia. No cenário de uma aldeia esquecida nos confins da montanha, marcada pelo isolamento, que entra em sobressalto à medida que se descobre que a morte, na figura de um assassino, anda à solta. O autor recria com mestria um ambiente rural português, triste e sombrio, com as suas crenças e segredos. As personagens de Fojo que dão força à narrativa, são figuras humanas marcadas por traumas e escolhas difíceis. Visualmente, Medina entrega mais um excelente trabalho com um traço detalhado e expressivo. Os seus enquadramentos transmitem tensão psicológica, e são complementados por uma paleta de cores minimalista que reforça a atmosfera densa de uma história envolvente, bem conseguida, que nos conduz a uma leitura ávida, página após página. E no final ficamos com a certeza de que Fojo é, sem dúvida, um dos melhores exemplos do potencial narrativo e artístico do Osvaldo Medina.
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3. Se a obra maior de Luiz Vaz de Camões não é de leitura
fácil, não podemos esperar que que a sua literal adaptação para banda desenhada o seja. Vamos ser sinceros, não é. Mas desfrutar de OS LUSÍADAS nesta experiência visual a três mãos é absolutamente fantástico. A obra que nos chegou este ano, incluída na colecção de Clássicos Portugueses da Levoir, é um projeto tripartido entre os
artistas Daniel Silvestre, Miguel Rocha e João Lemos com a coordenação de Pedro Vieira de Moura, e ainda que correndo o risco de avaliar um
todo pela parte, posso dizer que ficou muito bem entregue. De início Camões, o narrador onisciente, que nos dá a visão divina e humana dos
eventos, surge-nos pelo traço e cores suaves de Daniel Silvestre, uma das boas revelações do ano. Ilustrar toda a atribulada viagem de Vasco da Gama pela
costa oriental da África, desde do episódio do velho do Restelo até ao encontro com o Adamastor, entremeada pelo concílio dos deuses, ousou
Miguel Rocha. E aqui o desenho explode em belas composições e cores. Enche as páginas com um estilo visualmente delirante que combina com uma
paleta cromática arrojada. De uma absoluta beleza. Entre Cantos ficam os feitos dos reis portugueses narrados em episódios da História de Portugal, por conta do traço elegante e fluído de João Lemos, que em boa hora regressou à bd portuguesa. Esta primeira parte reúne os Cantos I a V da epopeia camoniana, e é, sem dúvida, umas das melhores narrativas gráficas do ano, que merecia uma melhor uma edição, no mínimo em generosas medidas 235x320 franco-belga. A segunda parte da viagem está marcada para 2025.
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4. Com SOL, o Diogo Carvalho apresenta-nos o seu trabalho de maior fôlego. Arrisca numa obra de ficção-científica, um género cada vez mais pouco frequente na banda desenhada portuguesa. Serve-se habilmente de múltiplas referências cinematográficas, e usa os códigos do Oeste Selvagem para construir aqui um western futurista, numa realidade longínqua onde cada planeta vale em função dos seus recursos naturais. A história segue Sol, uma força solitária da natureza de resiliência e determinação, que atravessa um planeta mineiro desolado e esquecido, numa jornada pela sobrevivência em busca de uma planta com propriedades medicinais únicas. A chegada de um estranho à cidade que é sempre olhado com uma ameaça à ordem instalada poderá parecer um cliché, mas é o gatilho para uma aventura recheada de acção, até porque o autor não poupa a sua personagem principal a inúmeras situações de perseguições e explosões. Uma história com várias leituras, onde o Diogo não deixa de reflectir as suas preocupações numa espécie de antevisão, como o presente, com a degradação ambiental, com a exploração intensiva de recursos naturais e a subjugação de populações a interesses superiores poderá bem vir ser um futuro. SOL é uma bela surpresa.
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5. Pelas suas anteriores obras, já poderíamos dizer Paulo J. Mendes é o digno sucessor do humor nonsense que encontrávamos nos trabalhos de José Carlos Fernandes. E neste seu novo livro, ATENDIMENTO GERAL, confirma. Mostra-nos essa continuidade com mais um dos seus retratos, onde entrelaça o nosso quotidiano com um humor satírico e um toque de critica social. Sob o pretexto da abertura de uma sucursal de um balcão de serviços de “percentuais e coeficientes” numa tradicional vila do interior rendida ao “cuntemporâneo” onde amores e desamores perdidos voltam à tona, o Sr. Lombinhos é a figura principal de rol de novos personagens, numa narrativa que segue com o autor a jogar entre o surreal e o absurdo, levando situações do dia a dia a extremos desconcertantes. Abusando dos jogos de palavras e diálogos improváveis, o autor consegue equilibrar o exagero humorístico com um olhar atento aos comportamentos sociais, resultando numa comédia que diria ser ao mesmo tempo despretensiosa e reflexiva. E apesar da história pecar um final algo excessivo, nesta obra, Paulo J. Mendes confirma o seu talento para transformar o banal em hilariante e o previsível em surpreendente, criando um universo onde o humor caustico é uma poderosa ferramenta de crítica e entretenimento.
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1 comentário:
Ferpeitamente de acordo!... Um Bom Ano!...
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