O Vento nas Areias
A arte de manter as coisas simples…
Em termos de escrita, não há nada mais difícil. A simplicidade é muitas vezes confundida com fraca cultura ou conhecimento e, por isso, tantas vezes evitada, até pelos melhores escritores.
Mas há sempre uns quantos que que conseguem tornar simples conceitos complexos, sentimentos intrincados e até memórias que nos fazem sonhar.
E se Kenneth Grahame – autor escocês que escreveu em 1908 O Vento nos Salgueiros, aquele que é hoje um clássico da literatura infantil britânica – conseguiu então esse feito, Michel Plessix alcançou a perfeição da simplicidade ao fazer a adaptação da mesma obra para o universo da Banda Desenhada. Uma versão que, como já tive oportunidade de escrever noutra ocasião, é a síntese perfeita entre o original de Grahame e a série de TV que imortalizou as figuras antropomórficas do Rato, do Toupeira, do Sapo e do Texugo para toda uma nova geração de crianças que assistia à emissão da RTP em 1984.
Entre 1996 e 2001, Michel Plessix oferece ao mundo as aventuras destes heróis que habitam o Bosque Selvagem, levando uma existência doce que só é perturbada aqui e ali pelas excentricidades do Barão Sapo.
O resultado foi um enorme sucesso editorial que acabou por o levar numa nova e longa aventura com os mesmos personagens, escrevendo para isso um argumento original – O Vento nas Areias – publicado agora em Portugal numa versão integral pela Arte de Autor.
Sendo que o traço de Plessix não tem nada de simples, chegando a rondar a loucura em termos de pormenor, já a história e a narrativa conseguem iludir o leitor com a sua aparente simplicidade.
Tal como Grahame, Plessix devia ser um seguidor daquele acrónimo norte-americano criado em 1960 por um engenheiro da marinha, K.I.S.S. – Keep it simple, stupid. Mas manter as coisas simples não significa que elas não sejam complexas.
E antes que este texto se complexifique…
Vamos à história!
São os últimos momentos de um Verão que passa, suave e docemente, o testemunho a um Outono que surge de mansinho. Para uns é tempo das colheitas que lhes garantam segurança no Inverno. Para outros, é tempo de partir para o Sul, em busca de terras mais quentes.
O certo é que o correr das estações muda o rosto do Bosque Selvagem. E a multitude de verdes começa a dar lugar aos amarelos e castanhos.
A canícula já vai longe e a atmosfera está no ponto do perfeito equilíbrio. Por isso, o Rato não percebe porque tantos rumam para outras paragens e ignoram a beleza da época baixa. O Rato é daqueles que ficam enquanto outros partem.
Mas o destino gosta de brincar com a constância dos seres e, neste caso, propicia um encontro entre o Rato e um rato marinheiro. Este, nascido em Malta de uma mãe britânica de Gibraltar e de um pai irlandês, conta ao Rato a sua vida de viagens e aventuras no mar e por terras estranhas.
A noite traz-lhe inquietude, sobretudo porque lê o livro das Viagens de Marco Polo. Mas rapidamente alcança a paz ao observar o seu rio, aquele que passa mesmo debaixo da sua janela. É ali que o Rato sente o centro do mundo, a sua segurança, a sua tranquilidade.
Na manhã seguinte, o Rato conta a história do rato marinheiro aos seus amigos Toupeira, Texugo, Sapo e Lontra. Mas enquanto a narrativa do Rato prende a atenção dos seus amigos, ao Sapo reacende o seu desejo de aventura.
No dia seguinte não há sinal do Sapo. Partira sem avisar. E com ele levou apenas o seu chapéu de marinheiro. O Rato amaldiçoa-se por ter contado a história de viagens ao Sapo e agora só lhe resta correr atrás dele e tentar impedir que faça uma das suas asneiras. Com ele vai o Toupeira e descobrem rapidamente que o Sapo entrou como clandestino num navio.
Quando tentam trazê-lo à razão, o grande veleiro zarpa rumo ao Sul, em direcção a terras desconhecidas com sabor a Oriente…
Esta versão integral de O Vento nas Areias reúne os cinco volumes criados por Michel Plessix entre 2005 e 2013. Li-os então com avidez, embora tivesse achado a sua qualidade narrativa muito variável. No entanto, tenho de confessar que esta releitura da obra, agora na sua versão integral, permitiu-me apreciar melhor os tempos da narrativa e a aproximação fiel que Plessix fez aos personagens criados por Kenneth Grahame.
Para quem leu O Vento nos Salgueiros, o cenário das primeiras 21 pranchas de O Vento nas Areias não lhe será estranho. O Bosque Selvagem, a imponente mansão do Sapo e as redondezas são o palco onde começa esta aventura. Contudo, logo se antevê a expansão do universo do Rato & Cia quando este tem um encontro fortuito com o rato marinheiro, personagem que parece homenagear Corto Maltese, até pela sua origem.
E se o Rato não é de viagens, preferindo que os seus périplos internacionais se realizem apenas nas páginas de livros, já o Sapo tem alma de aventureiro, ainda que completamente inconsequente. Ao ouvir o relato do Rato, o Sapo não se permite ficar pelo sonho de viajar. E parte. E os seus amigos partem atrás dele. Em menos de nada, os três encontram-se no porão de um veleiro a caminho do Magrebe. Mais concretamente, a caminho de Marrocos.
E é aqui que surge a primeira premissa que dá corpo a esta nova narrativa deste grupo de amigos: a inquietude.
Se em O Vento nos Salgueiros temos um conto que nos dá conforto, sem grandes conflitos e com uma doçura permanente que nos remete para a infância, em O Vento nas Areias temos o mesmo, mas com uma tensão permanente que vai durar até ao epílogo. Chegados ao “Oriente Africano”, o Rato, o Toupeira e o Sapo não têm meios financeiros para regressarem ao Bosque Selvagem. Pior, nem sequer têm onde ficar ou como se alimentarem.
E é precisamente nesta inquietude geradora de tensão que Plessix consegue manter a toada da obra de Grahame. Ou seja, tornar simples mesmo a situação mais complexa. Sem dinheiro, sem casa e sem comida, os heróis conseguem manter aquela felicidade tão característica da maior parte das crianças e sobre a qual os adultos se limitam a sonhar com saudade. A tensão está lá, mas só damos por ela se interrompermos a leitura e pensarmos seriamente na situação “dramática” que envolve o Rato e amigos.
A segunda premissa é o desejo por coisas novas através de um espírito aventureiro. Traduzido para esta história: viajar.
Nos “Salgueiros”, a acção está confinada quase sempre ao Bosque Selvagem. E isso é parte do seu encanto e conforto. Não há grandes surpresas e o mundo é nosso conhecido.
Pelo contrário, nas “Areias” a viajem é uma constante. E nunca estamos seguros que o próximo cenário não seja de catástrofe. Tão depressa nos encontramos numa povoação estranha, pejada de sons, cheiros e gentes que nos são desconhecidos, como logo de seguida nos encontramos na beleza silenciosa do deserto ou fustigados por uma mortal tempestade de areia.
Mas viajar é mesmo isso! A novidade dá, não poucas vezes, lugar ao inesperado e a inconstância passa a fazer parte do charme da vida.
E, apesar disso, também aqui Plessix consegue manter as coisas simples. Mesmo em momentos de maior aflição, o Rato, o Toupeira e o Sapo parecem trazer sempre consigo a alma do Bosque Selvagem.
Embora as duas primeiras premissas sejam válidas por si, enquanto motor da narrativa, é na terceira que se encontram os pontos de maior interesse: o choque civilizacional.
Já seria estranho para o Rato e seus amigos viajarem, por exemplo, para Portugal. De certo, estranhariam usos e costumes e desejariam voltar rapidamente para o Bosque Selvagem. Mas, o que dizer então de uma viagem para o Norte de África onde o choque para eles é mais do que cultural? É civilizacional! O Bosque Selvagem, Ocidental. O Magrebe, Islâmico.
E Plessix deixa que esse choque aconteça, sem o escamotear. Pode ser através de expressões simples da língua árabe, como Salam aleikum, ou de expressões mais complexas ou menos conhecidas que nem sequer se dá ao trabalho de traduzir. Pode ser através das inúmeras iguarias que são apresentadas aos nossos heróis, que as começam por consumir a medo, rendendo-se-lhes prontamente. Pode ser através do chamamento para a oração por parte do Muezim, lá do alto de um minarete. Ou pode ser ainda pelas questões religiosas que, neste caso, até incluem uma seita de fanáticos.
Seja como for, Plessix consegue de novo, mesmo em terreno mais movediço, manter a simplicidade. De tal modo que Marrocos passa a ser um substituto de pleno direito do Bosque Selvagem. Apesar de todas as vicissitudes, os nossos amigos encontram em Marrocos e no Islão uma nova e acolhedora casa.
A lição é simples! Todas as viagens podem ser de crescimento. Todas as inquietudes devem ser ultrapassadas e metamorfoseadas em aprendizagem. E, por fim, o mundo é uno. É um só. E, independentemente de nele habitar uma multitude de povos, regendo-se pelos seus usos e costumes e seguindo diferentes religiões, cabe a cada um perceber que todos temos pontos em comum e que a vida segue sempre o mesmo destino final.
Por isso, é preciso saber vivê-la. Essa é a arte dos grandes mestres… os mestres da vida. Não o Sapo, boémio inconsequente e egoísta (embora bom amigo), mas o Rato, o Toupeira e o Texugo que, cada um à sua maneira, retiram o melhor que a vida propicia, para si e para os outros.
Prontos a conhecerem o desconhecido, podem depois regressar ao Bosque Selvagem, o seu ponto de conforto, e sonhar com saudade de outras paragens que passaram também a ser suas.
Enquanto em Vento nos Salgueiros Plessix teve a árdua tarefa de adaptar para Banda Desenhada o original de Grahame, aqui a história é de sua autoria. E, no entanto, bem poderíamos pensar que a autoria é do autor escocês, tal é a fidelidade com que recria os personagens. A história é de Plessix, mas o espírito permanece o de Grahame – e digo-o como elogio.
Enquanto nos “Salgueiros” a narrativa corre ao ritmo das estações do ano, nas “Areias” passamos rapidamente de um final de Verão no Bosque Selvagem para um ambiente ensolarado, resultado do rumo ao Sul. É este abrir da luz que parece dar aos nossos heróis capacidades que lhes desconhecíamos e que se refletem bem na tal inquietude, no desejo de viajar e no choque civilizacional.
E tal como tinha acontecido nos “Salgueiros”, Plessix consegue manter intelectualmente e culturalmente belo este novo livro. São numerosas as referências à literatura de aventura, aos poetas viajantes e aos marinheiros solitários. E a narrativa, enquanto a acção prossegue, brinda-nos com belos textos poéticos ou descritivos que complementam na perfeição a trama central.
Vejam como, ao mesmo tempo que assistimos ao bulício numa das ruas da medina (página 55), somos brindados com um texto que parece anular toda a agitação: “O ar era calmo e suave, ao abrigo do labirinto da medina. Apenas o voo planado das gaivotas lá em cima, muito lá em cima no céu, denunciava o sopro dos alísios.”
Ou como o Toupeira se apropria do pensamento de Lizarbou, o gato, grande espectador do pequeno teatro da vida, enquanto deambula sozinho pelas ruas labirínticas: “Numa viagem, tal como na vida – e não é a vida uma viagem? – temos de nos deixar ir ao acaso, abandonarmo-nos, para que surjam os encontros com pessoas, com lugares, com momentos, e para que o mundo se entreabra.”
Esta espécie de narrativa a dois tempos é talvez o segredo do bem-estar gerado no leitor, esteja ele a aprender as primeiras letras ou as conheça de cor há várias décadas. E, de forma mágica, parece nem ser necessário ser-se dono de uma compreensão culturalmente avançada. Mesmo que não se perceba um termo ou se desconheça uma palavra, o leitor é apanhado pela narrativa mágica de Plessix.
Dos campos bucólicos ao sumptuoso palácio do Sapo, das ruelas sombrias de uma vila portuária ao porão de um grande veleiro, das ruas labirínticas da medina aos minaretes altaneiros, do deserto sem fim aos cafés frondosos, Plessix encanta-nos sempre com este universo fabuloso. E até nos dá o bónus de nos afastar dos clichés turísticos, fazendo-nos mergulhar no Magrebe dos autóctones, dos mercados, das praças tomadas de assalto por fanáticos religiosos, dos costumes das famílias marroquinas.
Uma verdadeira balada poética, O Vento nas Areias é também uma ode à amizade. Mesmo discordando do Sapo, o Rato e o Toupeira não deixam de o seguir, tentando evitar que se meta em novas confusões. E mesmo quando o barão batráquio foge à sua vigilância e exerce o seu egoísmo como ninguém, mesmo assim não é abandonado pelos amigos.
Claro que é impossível falar de uma obra de Michel Plessix sem elogiar a sua arte. Uma arte de encantar que tem o mérito de conseguir envolver de igual modo adultos e crianças.
Desde logo, as paisagens e cenários são, todas elas envolventes e deslumbrantes, criando uma harmonia constante que nos leva, quase inconscientemente, àquela experiência imersiva que é a de retroceder à infância. Não interessa se estamos no Bosque Selvagem ou nas suas orlas, com uma miríade de árvores e folhagens que envergam uma variada paleta de verdes e castanhos. Não interessa se estamos numa vila marroquina com multidões que preenchem as ruelas ou num oceano de areia modelada em dunas pelos ventos. Independentemente para onde sejamos levados por Plessix, o que nos espera é o deslumbramento do seu traço. Mesmo quando ele faz o inverso do que nos habituou e suprime a enorme quantidade de detalhes com os quais ornamenta as suas vinhetas.
Cada página é um regalo para os olhos. Nenhum detalhe é de menor importância ou deixado ao acaso. As pranchas são polvilhadas de pequenos detalhes divertidos. São miríades de detalhes que se apoderam de paisagens, dos personagens, dos meros figurantes, dos magníficos décors, criando a tal envolvência extraordinária.
Detalhes que estão presentes nas vinhetas maiores e que se miniaturizam nas mais pequenas. O pequeno é tão detalhado quanto o grande. Aliás, os detalhes atingem um nível de perfeccionismo nas cenas passadas nas ruelas e praças da vila marroquina. É por demais evidente que Plessix teve um grande prazer a recriar a ambiência quente do Magrebe, com uma graça infinita e um traço muito preciso.
E depois há os personagens, desenhados de forma sublime e credível. Ao Rato, Toupeira, Sapo e Texugo antropomórficos junta-se uma formidável galeria de secundários que são tratados como se de personagens principais se tratassem, mesmo ao nível da expressividade. E o encanto gerado no leitor é tal que nem sequer nos questionamos porque razão o autor mistura humanos e animais num mesmo universo de entendimento.
A prosopopeia (ou personificação) dos ratos, sapos, toupeiras e outros animais remete, não poucas vezes, para o melhor da Disney através da vida e do ritmo dados ao desenho carregado de virtuosismo.
Por fim, a paleta de cores é cintilante e faz com que o desenho e os enquadramentos adquiram uma grande profundidade, auxiliadas por um magnífico jogo de luz e sombra. Cores e sombras que aliviam de forma inteligente imagens esmagadas por sol e calor.
Em suma, este volume integral de O Vento nas Areias permite uma leitura completa que faz a narrativa ganhar em coerência e beleza.
Convite à descoberta e à abertura ao mundo, pode ser visto como uma viagem iniciática encetada por amigos fiéis e de nobres sentimentos que alargam dramaticamente o seu universo constituído pelo Bosque Selvagem para fronteiras longínquas e desconhecidas.
Vários dos temas abordados são complexos, mas tratados com uma simplicidade inteligente e diálogos refinados que são coadjuvados pela voz-off poética que nos faz mergulhar de imediato numa sensação de nostalgia. Uma nostalgia que nos faz regressar àquele mundo onde todos gostaríamos de viver.
E o que dizer da arte de Plessix que, para além de ser extraordinariamente bela, é uma lição de construção e de equilíbrio gráficos, envolvendo-nos por completo, miúdos e graúdos, num conto de encantar.
Ao terminar esta leitura de O Vento nas Areias, lamentei apenas uma coisa: não ter lido os dois volumes integrais do “Vento” de seguida.
O Vento nos Salgueiros e O Vento nas Areias são daquelas obras que deveriam estar em todos os lares portugueses onde a convivência familiar se pauta ainda por alguma literacia. Não importa se nesses lares existam crianças. Importa sim que o espírito do leitor seja jovem. E mesmo que não o seja, porque não experimentar uma viagem nostálgica às alamedas da memória.
De qualquer forma, lamento também que os meus filhos já sejam crescidos e que o tempo de os aconchegar na cama contando-lhes uma bela história em pequenos capítulos cândidos que lhes fecham o dia já vá longe.
Resta-me esperar pelos netos, resta-me ler para mim, resta-me deixar-vos com parte dos versos que Jorge Palma escreveu para a série de televisão.
Vento nos Salgueiros, pareces saber
Os contos certos e como os contar
Aos que ainda querem sonhar.
Vento nos Salgueiros, até já!
2 comentários:
Bela análise, quem escreveu, o Nuno Neves ou o Francisco Lyon de Castro? Costuma mencionar o autor é uma mera curiosidade.
Parabéns
Caro anónimo, agradeço a sua apreciação do meu texto.
Continuação de boas leituras.
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