sexta-feira, 7 de novembro de 2025

A confirmação da grandeza

 Fábulas das Terras Perdidas

Ciclo 2 – Os Cavaleiros do Perdão

 

Nas obras de Banda Desenhada, há leitores que dão mais importância ao desenho. E há outros que a dão ao argumento. Apropriando-me do adágio popular que fala do meio e da virtude, dou igual importância a argumento e desenho. História mal escrita e desinteressante não é salva por uma arte exemplar. Mas uma história envolvente e cativante servida por uma arte menor é uma desgraça.

 

Claro que se pode argumentar que “bom” e “mau” são conceitos subjectivos. Mas, mesmo assim, têm necessariamente de ser aplicados quando lemos um livro.

 

De qualquer modo, há que ter em conta que é o escritor que assume o papel do mestre das ilusões, do grande manipulador, do encantador de leitores. E no presente caso, Jean Dufaux mostra neste Ciclo 2 das Fábulas das Terras Perdidas que é não só um mestre na planificação de enredos como é também exímio na arte da paciência.

 

Passo a explicar.

 

De 1993 a 1998, Dufaux criou todo um novo universo, cuja narrativa se prolongou ao longo de quatro álbuns magnificamente desenhados por Grzegorz Rosinski. A série foi um sucesso! E Dufaux esperou, esperou, e regressou às “Fábulas” seis anos depois. Não com uma continuação, mas com uma prequela publicada entre 2004 e 2014. E desenhada pelo seu cúmplice em outra magnífica série: Murena.

 

O resultado é o adensar deste universo das Terras Perdidas, numa edição integral do Ciclo 2 – Os Cavaleiros do Perdão – publicada agora em Portugal pela Arte de Autor.

 

Com a arte a cargo do virtuoso Philippe Delaby, estavam reunidas as condições para que se desse a confirmação da grandeza deste projecto megalómano.

 

Vamos à história!


Sill Valt, Eïrell, o seu noviço, e um grupo de homens de armas partem por mares e terras inóspitas com destino ao ponto conhecido como Buraco de Orgast. Aí chegados, torna-se evidente que aquele que está preso a um poste, envolto por uma serpente gigantesca e meio apodrecido é um dos seus, Finch de Tafell, um Cavaleiro do Perdão.

 

Sill Valt tenta recuperar o corpo do companheiro, mas a enorme serpente ataca o grupo sem hesitar, com uma rapidez e precisão inesperadas. Degola um cavaleiro e abraça mortalmente Eïrell, valendo a este o gume afiado e a destreza da espada do seu mestre. Recuperados, mas inquietos, o grupo percebe que a língua do cadáver tinha sido arrancada, sinal das artes de uma feiticeira.

 

Uma Morrigane, feiticeira de primeiro sangue, há muito tidas como desaparecidas, esconde-se na ilha de Eruin Dulea, nas terras de Glen Sarrick. Responsável por um sem número de mortes e senhora de um apetite sem limites, ela mata e devora as suas presas, sejam elas homens, mulheres ou crianças, na busca incessante daquele que apaziguará o seu ódio e as suas entranhas.

Devendo assistência e protecção aos senhores de Dylfel, a família nobre de Glen Sarrick, os Cavaleiros do Perdão, comandados por Sill Valt, partem em seu auxílio. No grupo vai o jovem Seamus na sua primeira missão. E com ele, carrega uma profecia: Seamus será a espada e a ferida da Morrigane. Mas se alguma vez conhecer o amor, tornar-se-á num traidor.

 

E é com o peso desta profecia, só conhecida por Sill Valt, que os Cavaleiros do Perdão partem numa longa aventura repleta de mistério, intriga e dos confrontos mais inesperados.

 

Seis anos após a publicação do primeiro ciclo das Fábulas das Terras Perdidas, o escritor Jean Dufaux brindou os seus leitores com um segundo ciclo, o de Os Cavaleiros do Perdão. Felizmente, o tempo de espera para os leitores portugueses resumiu-se a poucos meses, com a edição dos dois ciclos em edições integrais.


Mas em forma, Os Cavaleiros do Perdão marcam uma certa quebra com o primeiro ciclo. Desde logo, não temos aqui a continuação das aventuras de Sioban, mas antes a narrativa do que aconteceu décadas antes do aparecimento da heroína. E depois, há uma “substituição” de desenhador: Philippe Delaby toma o lugar de Rosinski. Aliás, este princípio de “novo desenhador” será seguido também nos ciclos 3 e 4. A única constante é de facto o argumentista Jean Dufaux. E ainda bem! O autor belga consegue melhor do que ninguém desenvolver e adensar este seu universo das Terras Perdidas, não ainda recuando às origens, mas criando os alicerces e a credibilidade para as aventuras posteriores de Sioban. Para além disso, a parceria com Delaby resulta como uma espécie de porto seguro para Dufaux, pois é com ele que então cria e executa outra obra-prima da BD, a série Murena.


Esta segunda tetralogia é composta pelos volumes Moriganes, Guinea Lord, Fada Sanctus e Sill Valt. Todos eles seguem a demanda de Sill Valt e dos seus Cavaleiros do Perdão em busca da Morigane que assola a região e, ao mesmo tempo, focam-se no desenvolvimento do personagem de Seamus que terá um papel preponderante no Ciclo de Sioban. De forma simplista, pode dizer-se que este é o fio condutor da narrativa. Mas Dufaux é mestre na arte de contar histórias e assim, cada volume deste novo ciclo é também uma aventura por si só, quase fechada, não fossem os tais fios condutores.

 

Tendo em conta o primeiro ciclo, a história é agora mais rica, mais sombria e menos convencional. É o momento de se criarem os mitos das Terras Perdidas, de esboçar as lendas de sabor medieval protagonizadas por uma galeria de novos e densos personagens.


Este é um risco assumido por Dufaux e Delaby. Afinal, uma horda de bedéfilos tinha sucumbido anos antes à lenda da princesa Sioban e agora ela nem aparece. Explorar um filão é sempre perigoso e são mal-avisados aqueles que se limitam a pegar naquilo já realizado e a fazerem mais do mesmo. Ora, Dufaux não só não cai nessa tentação como aproveita para criar os alicerces das fábulas futuras das Terras Perdidas. Uma jogada perigosa de alguém que acredita nos seus dotes narrativos e no interesse incondicional dos leitores em cada uma das suas novas obras.


Mas há um elemento comum entre os dois ciclos: o personagem de Seamus, o jovem Cavaleiro do Perdão. Vamos agora acompanhar as suas demandas. A que o opõe, na companhia do seu mentor, ao mal incorporado nas Moriganes. A mais secreta e interior, que fará dele um personagem tão particular. E a demanda de fugir ao seu destino e que marcará o correr da aventura e o fim do ciclo.

 

Enquanto o grande fresco do passado se vai pintando perante o nosso olhar, Dufaux enriquece-o com uma galeria de ricos personagens que lhe dão consistência e interesse redobrado. Todos eles carismáticos, sejam bons ou maus, as suas personalidades irradiam e enchem-nos o imaginário. Sill Valt, Seamus, Eïrell, desses já falámos. Mas logo nos surge, do lado do mal, Guinea Lord, um guerreiro invencível, de identidade desconhecida e de alma atormentada, capaz das maiores atrocidades para alcançar os seus objectivos. E acima do bem e do mal, a Fada Sanctus, uma antiga feiticeira tocada pela graça e a razão do regresso de Guinea Lord e das Moriganes às Terras Perdidas por temerem o seu enorme poder. E ainda Saavadra, a mater obscura, rainha de todas as Moriganes e a grande manipuladora.

 

Independentemente dos considerandos relativos à arte que se farão mais adiante, em termos narrativos Dufaux parte para este segundo ciclo com vantagem sobre o primeiro. Tendo estabelecido todo um novo universo, é agora tempo de construir uma narrativa com sabores de lenda e de mitologia, complementada com pequenos toques subtis ao ciclo de Sioban. Ao mesmo tempo, oferece-nos em cada capítulo uma intriga de certo modo independente, fechada e perfeitamente equilibrada. E é exactamente esta mecânica eficaz que nos faz acompanhar de forma entusiástica cada aventura sem nunca perdermos consciência da intriga global.


Uma intriga, como todas as que são boas, que segue em crescendo até ao desenlace final. Aliás, são crescendos dentro de um crescendo maior, já que cada capítulo corre sempre para um términos inesperado. O leitor, esse, desespera, antecipando os confrontos finais que esperam Seamus e, sobretudo, Sill Valt, a quem foi confiado o centro da trama, ambos submetidos aos caprichos dolorosos do destino. O sentido do sacrifício, o peso das responsabilidades, as fragilidades humanas, as escolhas dolorosas, o poder inebriante dos sentimentos amorosos, levarão um e outro a alcançar o que certamente já estava escrito.


É-nos reservada para o fim uma derradeira surpresa, antecedida por inúmeras reviravoltas no argumento, sexo e muita acção. O carisma de Sill Valt cola na perfeição com as aspirações épicas da série e com o decorum de fantasia-heroica da série. A isto há que juntar uma narração em voz-off esculpida na perfeição e que Dufaux, mais de dez anos passados, continua a aprimorar nas suas obras mais recentes. De facto, em termos narrativos, é mais o poder da palavra o que mais conta. Por essa razão, a epopeia de Dufaux centra-se mais nos seres. Não é o choque de grandes exércitos que se opõem por entre o barulho e o furor das batalhas. São os indivíduos, com as suas forças e fraquezas, que devem chegar ao fundo das suas convicções, mesmo que isso signifique colocar a própria vida em risco.

Por fim, este ciclo dos Cavaleiros do Perdão está, sobretudo na parte final, envolto numa certa melancolia, num pesar de quem se entrega nas mãos do destino sem carpir mágoas. E tal pode ser visto no texto escrito por Dufaux e que antecede o quarto capítulo, bem como no texto inicial. É que Philippe Delaby morre subitamente em Janeiro de 2014, após realizar 34 pranchas da última parte deste ciclo onde mostrou uma mestria gráfica de fio a pavio. Dufaux perde não só um amigo como o companheiro nas aventuras de Murena e das Fábulas das Terras Perdidas. Felizmente, Delaby tinha um “aprendiz”, Jérémy, que concluirá as 21 pranchas em falta com uma excepcional fluidez.

 

Delaby foi um desenhador fora de série. Com um traço clássico, atinge sempre uma perfeição rara de se ver e da qual só ele conhecia o segredo.


Seguramente, não foi por acaso que Jean Dufaux o escolheu como parceiro do crime em Murena e nas Fábulas das Terras Perdidas. De facto, as pranchas de Delaby encaixam-se na perfeição no argumento de fantasia medieval de toques poéticos e cavaleirescos criado por Dufaux.


Para Delaby, é tempo agora de deixar para trás os mármores luminosos da Roma clássica e mergulhar com a mesma mestria no universo sombrio e cinzento das charnecas, dos castelos e das fortalezas. Os cenários são sempre deslumbrantes e é impossível ficar indiferente mesmo à vinheta mais insignificante. É que o artista não deixa nada ao acaso, é meticuloso e não se permite aquela preguiça que por vezes invade os criadores. Não esperem por isso vinhetas com fundos sem cenário nas quais uma só cor ocupa o plano mais recuado.

 

O mesmo se passa com a composição de cenas. Sabendo que a vida corre a diferentes velocidades e percepções, Delaby não facilita. Por exemplo, se retrata uma festa “volante” com vários personagens, fá-lo colocando os protagonistas ao centro, no local exacto onde se desenrola a acção principal. Ao mesmo tempo, enriquece a cena com múltiplas acções: os menestréis que circulam pelo salão a tocar alaude e flauta; aqueles que se entregam ao vinho; o outro que passeia um urso pardo que será uma atracção da festa; os cães do senhor do castelo que comem os restos deitados para o chão; e ainda vários outros personagens, cada qual com o seu foco de interesse distinto. Ou seja, as vinhetas de Delaby são verdadeiras encenações, muito cuidadas, nas quais o leitor se pode e deve demorar para que o deleite da leitura seja ainda maior.

 

E se ficamos fascinados com cenários e composição de cenas, o que dizer do ponto forte do artista? De facto, o seu talento expressa-se na plenitude na representação de personagens. O seu traço fino é realçado por cores directas sublimes, a cargo de Jérémy nos capítulos 1 e 2. O resultado do trabalho da dupla é de excepção, sobretudo quando se trata de representar a beleza. É o caso de vários personagens que se destacam de outros num universo tão sombrio. Onde uns povoam as sombras ou se mantêm distantes nas cenas, outros, os personagens centrais, são colocados em plena luz, em grandes planos. E consegue alcançar-se mesmo o que parece impossível: representar o belo através apenas de uma estátua feminina, aparentemente singela, mas que nos prende a atenção e enfeitiça. 

 

De igual modo, os rostos mais hediondos merecem de Delaby a sua maior inventividade. Seja o da primeira Morigane ou o da Mater Obscura, o do demónio Cryptos ou o da putrefacta Mornoir, o do Braghen enraivecido ou o do misterioso Guinea Lord, todos eles nos surpreendem, pois todos eles nunca antes foram vistos nem nos nossos mais terríveis pesadelos. E como que querendo perturbar o bem-estar do leitor, Delaby consegue mesmo transformar o belo em hediondo, como acontece com Sylhia, a serva da Mater Obscura.

 

Antes de terminar, uma palavra final para a arte de Jérémy. Com a morte de Delaby, coube-lhe a difícil tarefa de terminar as 21 pranchas em falta. Antigo colorista do desenhador belga, e apesar da dificuldade técnica e mesmo afectiva de trilhar os passos do seu mestre, Jérémy assume a tarefa de maneira brilhante e oferece-nos uma continuidade gráfica sumptuosa.

 

Se a seu tempo as Fábulas das Terras Perdidas – Ciclo Sioban me encheu as medidas e senti nele uma grande história, com o ciclo de Os Cavaleiros do Perdão tive a confirmação dessa grandeza.


Uma enorme galeria de personagens densos e carismáticos, uma ambiência medievo-fantástica absolutamente envolvente, uma planificação dinâmica da narrativa, diálogos e voz-off esculpidos a cinzel, uma história intrigante que vale por si só, mas que nos projecta para a magia do primeiro ciclo. E a tudo isto acrescenta-se a tradução magnífica do imaginário de Dufaux por Delaby e pelo seu traço subtil, elegante e poderoso, bem como pela sua capacidade superior na composição de cenas. Por fim, a colorização, única e elemento enfeitiçante para o leitor.


Uma magnífica viagem entre amor, poder, loucura e demónios, Os Cavaleiros do Perdão é, talvez, o melhor ciclo da série. Se no primeiro se classificou a génese da grandiosidade, agora ela é mais que plenamente confirmada.


Últimas palavras para formular um desejo e um pedido a Jean Dufaux, tendo esperança na improvável hipótese de que me leia. Tendo criado um terceiro ciclo com Béatrice Tillier e um quarto com Paul Teng, porque não, caro mestre narrador, criar o Ciclo do Epílogo, num só volume, mas reunindo Rosinski, Jérémy, Tillier e Teng?


Fica a esperança…

 


Por Francisco Lyon de Castro. 


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