Nós, os lusitanos (perdão, os portugueses!), temos várias características que nos definem genericamente. Umas mais positivas, outras nem tanto.
Condensá-las num livro, ainda para mais por um estrangeiro, não é tarefa menor e exige uma capacidade analítica perspicaz. Claro que o autor de tal tarefa podia centrar-se no negativismo, na invariável quebra dos horários marcados, no gosto exacerbado por conversas de doenças e outras mazelas, na curiosidade mórbida pelo drama alheio, na preferência do que é pequenino e no vilipendiar do que é grandioso ou ainda no fatalismo que nos desgraça a todos.
Ora, se tal autor decide caracterizar-nos pela positiva, é mais que provável surgirem aqueles que colocam em prática algumas das tais características negativas que também nos caracterizam.
E falar disto porquê? Porque a Edições Asa acaba de publicar o 41.º álbum de Astérix, com o título Astérix na Lusitânia. Com desenho do nosso conhecido Didier Conrad, o argumento é da autoria de Fabcaro, que aqui bisa a sua participação nas aventuras do irredutível gaulês.
A caracterização dos portugueses ficou, por isso, a cargo de Fabcaro que desenvolveu um trabalho tão competente como Goscinny quando caracterizou os alemães (godos), os gregos, os espanhóis (hispânicos), os suíços (helvéticos), os corsos ou os belgas.
Fabcaro faz um trabalho muito competente e interessante e, de qualquer modo, o lançamento de um novo Astérix é sempre um acontecimento mundial que todos deveríamos acompanhar (a prová-lo está a tiragem inicial de 5 milhões de exemplares). Ainda para mais se a aventura se passa, finalmente, na nossa Lusitânia.
Mas antes de me adiantar…
Vamos à história!
Estamos no ano 50 antes de Cristo. Nada consegue travar o avanço de Roma na sua sede de conquista. Bem! Nada não é bem assim! Perdida na imensidão da Gália, mais precisamente na região da Armórica, uma pequena aldeia faz frente às legiões de Júlio César. Mas, de momento, as coisas parecem estar pacíficas, para desgosto de Obélix...
Naquela manhã de Primavera, os habitantes da aldeia acorrem à praia para saudar a chegada da galera do fenício Espigadote. A sua vinda é sempre sinal de que produtos das sete partidas do mundo (conhecido) chegarão às mãos dos gauleses.
Mas, desta feita, a acompanhar Espigadote vem um pequeno lusitano, o Tristês. Ora este viu há muitos anos o poder da poção mágica de Panoramix quando participava na construção do Domínio dos Deuses. E agora, vendo Malmevês, o seu melhor amigo, aprisionado e condenado a ser atirado aos leões, sob acusação de querer envenenar Júlio César com o seu garum, vem pedir ajuda a Matasétix, o chefe gaulês.
Indignado com a falsa acusação e pesada condenação, Matasétix envia Astérix e Obélix em missão à Lusitânia para salvarem Malmevês.
Enquanto isso, em Olisipo, o governador romano Interesseirus e o traidor lusitano Sacanês congeminam a morte de César e a criação do monopólio de garum, tudo à custa da condenação do pobre Malmevês.
Mal sabem Astérix e Obélix que a aventuram em que se vão meter tem muito mais que se lhe diga do que um mero salvamento. E Obélix nem sonha que na Lusitânia o prato rei não é o javali, mas… o bacalhau!
Dizer que Astérix na Lusitânia é uma obra simples e uma aventura que, em termos de argumento, não será das mais inspiradas é o mesmo que dizer que Anna Karenina de Tolstói é apenas um romance de amor.
Por alguma razão foi Fabcaro o eleito para substituir Jean-Yves Ferri no argumento das aventuras do pequeno gaulês. É que Fabcaro é conhecido pelo seu registo social e absurdo, como já demonstrou no álbum anterior, O Lírio Branco. Desta vez volta a cunhar a história com uma acidez sociológica que, por um lado, rejuvenesce Astérix e, por outro, o aproxima da escrita de Goscinny.
Ao contrário do que se possa pensar, a temática central de Astérix na Lusitânia não é a caracterização da “alma portuguesa” que, a propósito, está muito bem feita e da qual se falará mais adiante. É sim a crítica ao capitalismo feroz corporizado nas figuras do governador da província da Lusitânia, Interesseirus, do traidor lusitano Sacanês e do primo do governador, Burlus Lupus – caricatura de Silvio Berlusconi, sempre com o seu aspecto bronzeado.
Por trás da acusação feita a Malmevês esconde-se uma estratégia expansionista do governador romano e do seu acólito. Eles querem o monopólio do florescente mercado de garum (ou garo), o molho à base de peixe que era muito apreciado pelos romanos. Na Roma antiga chegou mesmo a ser considerado um produto de luxo e os centros conserveiros no que é hoje território português eram famosos, tendo sido um dos mais importantes de todo o Império o de Troia, no estuário do Sado. A alusão à lógica capitalista é transversal a toda a narrativa e é pretexto até para trazer Júlio César à província do fim do mundo. Fabcaro, sem o declarar, aborda assim temas como a mundialização, os grandes impérios comerciais (o grupo agroalimentar de Burlus Lupus) face aos pequenos artesãos (Malmevês) , etc. Só faltou mesmo falar das “taxas de Trump”.
Mas não é só o capitalismo o alvo velado da crítica de Fabcaro. Também o é o meio da “comunicação”. As duas pranchas que lhe dedica são hilariantes, com Niubizinês (nome inspirado), o guru da comunicação, a carregar as suas frases com latinismos como agora se carregam de forma ridícula com anglicismos. E a encetar com os dois gauleses uma tempestade de cerebrum ou brainstorme ou, mais correctamente, tempestade cerebral.
E mesmo antes disso, ainda deambula pelas palavras-passe difíceis de criar e a serem recusadas como “inválidas”.
Para além disso, e respeitando o caderno de encargos das aventuras de Astérix, Fabcaro pisca o olho à contemporaneidade. As alusões são várias, ficando para cada um o prazer de as descobrir. Saliento apenas aquela que se refere ao aumento da idade da reforma que deu origem a acesos debates e manifestações em França neste ano de 2025.
São estas referências que ancoram o álbum na nossa realidade quotidiana, conferindo-lhe uma dimensão intemporal e perpetuando o espírito de Goscinny.
Mas este é um álbum de “viagem” e como tal tem de caracterizar os autóctones, que é o mesmo que dizer, os portugueses. Digo-vos que o trabalho está muito bem feito. E se o compararmos com outros povos retratados nas aventuras de Astérix, arrisco mesmo a dizer que este consegue ultrapassar os clichés divertidos que caracterizam mais de 65 anos da série (não os esquecendo) e recriar a verdadeira alma portuguesa.
Tudo começa com Tristês, o pequeno lusitano até agora sem nome e que apareceu há 54 anos no 17.º álbum de Astérix, O Domínio dos Deuses. Um aparte para mencionar que também o fenício Espigadote apareceu no 6.º álbum da série, Astérix e Cleópatra, em 1965.
É precisamente pela voz de Tristês que começa a caracterização da alma lusitana através da história semi-ficcionada de Viriato, como poderão ver nas vinhetas que se seguem. Este é o ponto de partida para definir os “portugueses”, entre o orgulho e a tristeza, mergulhados sempre numa doce melancolia e no tal sentimento difícil de definir pelos estrangeiros, a saudade.
Ainda como exemplo da maneira de estar na vida dos lusitanos (portugueses), atentem na vinheta aqui à direta nesta postura tão facilmente reconhecível por cada um de nós.
Voltando ao fado, ele surge pela primeira vez na voz de Amália Rodrigues que canta “Estranha Forma de Vida”. E tem a sua apoteose na batalha final quando a senhora Gama canta “Ó Gente da Minha Terra” (também escrito por Amália). A vinheta é espantosa pois, não só a letra do fado define o povo português como a senhora Gama instila as hostes lusitanas a avançar sobre os romanos. Curiosamente, para além de Astérix e Obélix, o grosso dos guerrilheiros lusitanos são mulheres, talvez numa alusão à figura mítica da padeira de Aljubarrota.
Mas não nos podemos esquecer que as aventuras de Astérix são criadas, em primeiro lugar, para o mercado francês e, na verdade, a senhora Gama representa a “liberdade guiando o povo”, tal como é representada na famosa pintura de Eugène Delacroix. À Gama só lhe falta mesmo um seio desnudado. Mas isso não seria próprio de uma aventura de Astérix, muito menos nos tempos que correm, como veremos mais à frente.
Mas neste 41.º álbum dos nossos gauleses favoritos, o fado tem ainda outro propósito. Como pode ser visto várias vezes ao longo da história, funciona como a poção mágica dos lusitanos. Sempre que é cantado, mergulha numa profunda melancolia os romanos, que de imediato perdem a vontade de combater.
A saudade como melancolia poética é magnificamente explorada por Fabcaro que a transforma num recurso cómico e doce ao longo de todo o livro. E até lhe atribui uma identidade, a filha de Malmevês, de seu nome Saudade. Por sua vez, esta até tem uma tirada que me lembra a da Princesa Leia em The Last Hope. Enquanto Saudade diz “Ópá, vocês são a nossa última esperança”, a heroína de Star Wars apela “Help me, Obi-Wan Kenobi; you’re my last hope”.
Mas não é só de complexidade que Fabcaro se serve para caracterizar os portugueses. Respeitando os ensinamentos de Goscinny, ele utiliza também uma série de clichés exagerados, mas que, no todo, funcionam bem ao longo da obra. Desde logo, os azulejos, o bacalhau e a calçada portuguesa. E enquanto o primeiro é pacífico, já os outros dois são o desespero de Obélix que não compreende como é possível só se comer bacalhau na Lusitânia, esquecendo-se o divino manjar que é o javali, e qual a razão que leva os lusitanos a transformarem potenciais menires em pedras tão pequenas.
Há ainda referências ao famoso vinho de Portus Cale, ao famoso eléctrico 28 de Lisboa ou a Vasco da Gama (com o Tasco do Vasco – marido da senhora Gama já mencionada). Mas as referências nacionais não se ficam por aqui. Ronaldo aparece por duas vezes, ainda que em criança. Talvez um pouco menos evidente é o facto de Malmevês ser apelidado de revolucionário e “catalogado” como prisioneiro MCMLXXIV (1974), numa clara alusão ao 25 de Abril de 1974.
De referir ainda que não podiam faltar os nossos célebres pastéis de nata, embora usados de forma sacrílega por Obélix que, no entanto, não os deixa de consumir.
Por fim, há que lembrar que uma das marcas de Goscinny nos álbuns de viagem nas aventuras de Astérix era a utilização de particularismos das línguas nativas em jogos de palavras com o francês. E Fabcaro não ignorou essa regra, criando no original uma série de situações em que as palavras francesas terminadas em “tion” são proferidas pelos lusitanos com a terminação “ção”. Reconheço que a piada perder-se-ia na tradução e que a opção pelo “ó pá” até não está mal pensada, pecando apenas pela utilização excessiva.
Fabcaro artilha este álbum com muito humor e com os trocadilhos que eram tão caros a Goscinny, criando um todo coerente, divertido e que nem por isso ignora os assuntos mais sérios e as indispensáveis críticas sociais. A “domus por um rolo de papiro”, numa alusão directa a “ver Braga por um canudo” fez-me sorrir e confirmou-me que o trabalho das tradutoras não se limitou a verter o francês para português.
Quanto a Didier Conrad, é de facto um digno sucessor de Uderzo, tanto ao nível dos personagens como dos cenários. De facto, conseguiu fazer seu um traço que era de outro, mantendo-o dinâmico e apelativo para as novas gerações e para aqueles que acompanham há décadas as aventuras dos irredutíveis gauleses.
Para um leitor menos atento ou que não seja atreito às comparações, o traço de Conrad mima na perfeição o de Uderzo. No entanto, não é bem assim – e não é por isso que vem mal ao mundo. E tal acontece, sobretudo, em alguns personagens. É o caso de Júlio César, agora menos vincado e de traços ligeiramente mais suaves, o que lhe confere uma certa jovialidade. Ou de Cacofonix que, embora amordaçado, surge com um traço mais fino e uma expressão mais realista, acontecendo o mesmo com o pirata de idade provecta.
De maneira subtil, é talvez esta a maneira encontrada por Conrad para criar uma identidade gráfica própria sem desvirtuar o estilo do mestre Uderzo.
Uma referência ainda para o milagre operado por Conrad na transformação de Astérix e Obélix em lusitanos. Para isso bastou-lhe pintar-lhes o cabelo e bigode de preto e retirar as tranças a Obélix. Eficaz!
Por fim, o desenhador tem um sentido de composição apurado que se revela em toda a sua magnitude nas vinhetas maiores ou de mise-en-scène mais complexa. É o caso da candura e simplicidade da vinheta que retrata a chegada de Astérix à Lusitânia, avistando-se as Azenhas do Mar (Sintra) pintada com cores doces e quentes de um final de dia. Ou a chegada de Astérix e Obélix a Olisipo, por uma estrada panorâmica que deixa ver a cidade e o rio. Ou ainda a festa orgíaca com a qual o governador Interesseirus presenteia César na sua galera.
Uma nota final que serve tanto para Fabcaro como para Conrad. Após o “escândalo” com o Spirou desenhado pelo veterano Dany (Spirou et la Gorgone Bleue), que viu o seu álbum acusado de racismo e de sexismo através da pseudo-objectivação das mulheres, todos os criadores de Banda Desenhada viram-se perante o crivo não só da censura como, pior, da auto-censura. O medo que as suas obras sejam recusadas ou que eles sejam acusados disto e daquilo é mais forte do que a liberdade criativa.
Mas enquanto muitos se vergam por esta nova ditadura de costumes, outros parecem vergar-se, contornando, no entanto, o pesadelo do “lápis azul” – um pouco como acontecia na “revista à portuguesa” durante o Estado Novo. É o que acontece com Fabcaro e Conrad.
Talvez o caso mais evidente neste álbum seja aquele que se refere a Baba, o pirata negro que perde o seu sotaque acentuado no qual carregava nos “r”. Mas Fabcaro não vai em wokismos e faz questão de evidenciar o acontecimento: “Ele agora já pronuncia os “r”?” E até cita Cícero em latim, “o tempora, o mores”, que é o mesmo que dizer “ó tempos! Ó costumes!” Já Conrad faz-lhe um tratamento cosmético para evitar a acusação de que está a perpetuar estereótipos – rapa-lhe a carapinha (ou será cabelo crespo?), branqueia-lhe os lábios (à la Michael Jackson) e desenha-os menos inflamados.
Com certeza que a bacoca epidemia contemporânea a que se chama movimento woke não permitiria voltar a desenhar a curvilínea Falbala. Mas Fabcaro não hesita e retrata-a em nada menos que cinco vinhetas. De forma inteligente, apanha-lhe o cabelo, mantém-lhe o decote pronunciado, mas perde-a na multidão que ocorre à praia para receber Espigadote. Embora o peito generoso de Falbala não tenha sido sujeito a qualquer operação de cosmética por Conrad, a sua cintura de vespa a derivar para ancas pronunciadas aparece sempre velada. O pseudo-estereótipo só aparece em 50%.
Já as mulheres lusitanas têm as saias como mensageiras de uma espécie de erotismo. Assim, as mais velhas ou de meia idade usam-nas abaixo do joelho. Já as mais novas e excitantes, como a Saudade, revelam o joelho em toda a sua magnitude erótica. E não é que resulta?!
Este álbum está repleto de segundas camadas, uma espécie de segurança para os autores e reservada para aqueles que as conseguem descamar.
De qualquer forma, Fabcaro e Conrad, mais para o fim da obra, acabam mesmo por se “borrifarem” para os “wokes” e brindam-nos com um grupo de bailarinas, todas iguais, todas formosas, todas loiras, “todas boas”. Será que Astérix na Lusitânia vai ser boicotado e retirado das livrarias? Não creio!
Goscinny e Uderzo formaram uma dupla de sucesso que será lembrada por tempos vindouros. Criaram álbuns inesquecíveis e deram ao mundo alguns dos personagens mais memoráveis da Nona Arte. Mas, depois deles, a era Fabcaro é a melhor. Tanto no álbum precedente como neste, o fundo da aventura é de uma contemporaneidade acutilante, não poupando na crítica social sem, no entanto, ser alguma vez panfletário.
Sendo uma aventura “de viagem”, Fabcaro optou (à parte os clichés) por caracterizar os portugueses da forma mais complexa – a saudade e a melancolia, tendo a sua expressão máxima no Fado.
A tradição dos criadores originais é perpetuada. E embora não a transcendam, conseguem conferir-lhe alguns toques de transgressão, sobretudo quando fazem face ao neopoliticamente correcto e às tiranias censórias do movimento woke.
Ter um Astérix passado em Portugal é um momento único que, certamente, não voltará a repetir-se. Por isso, ó gente da minha terra, dos 7 aos 77, não hesiteis! Folheiem com carinho, absorvam as suas várias camadas, divirtam-se, riam-se de si próprios. E quando terminarem a leitura e colocarem Astérix na Lusitânia ao lado dos outros álbuns da série, deixem invadir-se pela nostalgia, pela saudade do momento em que o leram pela primeira vez e pensem na frase de Cícero – o tempora o mores. Afinal, todos os tempos têm costumes.
A propósito, e a prová-lo, os dois banquetes finais que reúnem heróis antigos e heróis novos e leitores pequenos e grandes à volta de um dos expoentes da Nona Arte.
Por Francisco Lyon de Castro.

















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