sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

E que sejamos todos encolhidos para um retrofuturo!

 
A Dupla Exposição

 

Os heróis que nos acompanham toda a vida (e de que gostamos) são os melhores! E essa é uma verdade quase insofismável. Na memória, guardamos aquela aventura que lemos no Natal de infância; outra que foi devorada quando ainda estávamos sobre o efeito do primeiro beijo dado à primeira namorada; a que lemos aos nossos filhos, abrindo-lhes o mundo da Nona Arte; ou ainda aquela lida num dia de Inverno calmo, doce e solarengo.


Para mim, Blake e Mortimer têm esse dom, o de estarem entre os melhores. Não só me antecedem como me ultrapassarão.


Criados por Edgar P. Jacobs em 1946 – comemorando para o ano 80 anos de vida –, o britânico do MI5 e o cientista escocês transcenderam a existência do seu criador e continuam (e ainda bem!) a viver as aventuras mais empolgantes.


Mas a comemoração de longevidade parece ter começado já neste final de 2025 com dose dupla dos heróis. Por um lado, com o 31.º volume da série-mãe, A Ameaça Atlante, de que se falará oportunamente. Por outro, com este A Dupla Exposição, escrito por James Huth e Sonja Shillito, e magnificamente ilustrado por Laurent Durieux. A Edições Asa acompanhou, mais uma vez, a publicação original em França das duas obras, permitindo ao leitor português a leitura em primeira mão na sua própria língua.


Sobre A Dupla Exposição, há que dizer que não é uma Banda Desenhada, mas antes um livro ilustrado publicado no formato italiano e que se insere numa colecção paralela designada por O Novo Capítulo, na qual escritor e ilustrador desenvolvem novas aventuras à volta de Blake e Mortimer.


A Dupla Exposição foi lido numa esplanada, aquecida por um suave sol de Inverno e acompanhado por todas as vitualhas a que tive direito. Só me levantei após ter terminado…


Vamos à história!


Primeiro de Maio de 1964. O voo da T.W.A., de Londres para Nova Iorque acaba de aterrar no aeroporto John F. Kennedy. Nele vieram Francis Blake e Philip Mortimer, convidados para a New York World’s Fair. Depois de recolherem as malas, apanham um yellow cab, para o centro de Manhattan, onde ficarão hospedados no elegante hotel The Pierre. Mas a sua presença não passa despercebida a um estranho personagem que confirma, por walkie-talkie a chegada dos dois amigos.


Mas o destino prepara-se para lhes pregar uma partida, assim que cada um se instala na sua suite. O professor Mortimer, após tragar dois golos de bourbon, cai no chão do quarto, inconsciente. Já o Capitão Blake lê a missiva que foi enfiada por debaixo da sua porta na qual Mortimer o informa ter ido explorar as redondezas, marcando encontro no “Futurama” na exposição universal.


Enquanto Blake se dirige para a World’s Fair, Mortimer recupera a consciência e percebe que está amarrado à sua cama. Conseguindo libertar-se, corre para a suite do amigo e descobre a missiva com a sua letra falsificada. Mortimer percebe de imediato que o amigo corre perigo e apressa-se a ir para o “Futurama”. Aí, encontra Blake sentado numa instalação imponente designada por Teletransportador no preciso momento em que os seis canhões de neutrões disparam a sua carga. Mortimer lança-se em socorro do amigo e ambos desaparecem perante o olhar atónito da multidão…

 

Se desconhecia por completo os nomes do casal James Huth e Sonja Shillito, o mesmo não posso dizer de Laurent Durieux, cujo taleto como artista gráfico há muito me encanta. Sobretudo na sua série de cartazes onde reinterpreta filmes conhecidos como Blade Runner, Jaws, Apocalypse Now, Chinatown, Titanic e tantos outros. O belga voltou a encantar-me com O Último Faraó, a sua primeira incursão no universo de Blake e Mortimer.

 

Esta é uma união feliz, a do casal Huth e Shillito (vindos do cinema) com Durieux. E isso está evidente na narrativa que acompanha na perfeição a estrutura do livro. Como já se disse, o formato é ao estilo italiano, na horizontal. As ilustrações são sempre de página inteira, sendo que na página oposta encontra-se o texto (que segue, por vezes, ao longo de duas páginas consecutivas). O resultado final são 68 páginas das quais 29 são com ilustrações e as restantes com texto (para além de duas ilustrações extra, uma na folha de rosto e a outra na contracapa).


A narrativa é clássica, descritiva, mas com diálogos que conferem uma certa dinâmica à leitura. Ao mesmo tempo, a trama tem um interesse reforçado pelo jogo que se faz com aventuras passadas de Blake e Mortimer, não impedindo isso a leitura d’A Dupla Exposição pelo leitor que desconheça os trinta e um volumes da série principal.


Os cavalheiros britânicos nossos conhecidos mantêm a fleuma e a elegância habituais, numa aventura onde a acção principal decorre numa cidade futurista-retro que cria no leitor admiração, resultado do apuramento estético de Laurent Durieux.


É sabido que o vilão de serviço em Blake e Mortimer é Olrik, desde 1946. E aqui não se abre uma excepção. No entanto, o leitor é brindado com todos os vilões que cruzaram o caminho dos dois heróis ao longo dos seus quase oitenta anos de existência. A saber: Olrik, Miloch, Septimus e Voronov. Ou seja, Huth e Shillito oferecem-nos um festival de vilania que, ainda para mais, tem origem 25 anos antes da presente aventura, remontando a 1939, na alvorada do Espadão. Espadão que tem também uma aparição neste livro.


O facto é que, o leitor embrenhado na leitura, envolvido pela narrativa eficaz de Huth e Shillito, lá vai dando com as ilustrações de Durieux. É sabido que os bons romances, novelas ou contos conseguem gerar no cérebro do leitor imagens muito fortes. Digamos que quem lê desenha mentalmente ilustrações ou bandas desenhadas. É o “filme do cérebro” como lhe chama o Professor António Damásio. Ora, quando Durieux ilustra duas ou três linhas de uma página, e a narrativa que as antecede e sucede se mantém empolgante, o nosso cérebro compensa a ausência de mais ilustrações desenhando a nossa própria BD ou ilustração ou filme.


E é precisamente neste ponto que percebemos o bom casamento realizado entre a palavra e a ilustração destes três autores. É impossível não estarmos empolgados com a leitura, deslumbrados com a arte ilustrativa e, ao mesmo tempo, sermos nós próprios os criadores mentais das imagens em falta. Atente no exemplo, caro leitor, que é antecedido por três parágrafos e sucedido por mais quatro linhas. Mas a ilustração, embora bela, só ilustra duas linhas.


- Saint Joseph de Cupertino, santo padroeiro dos aviadores, este não é o momento para me dececionares - brinca ele, à inglesa, antes de se lançar no vazio…

 

É preciso que se diga que James Huth é um apaixonado de Blake e Mortimer desde a infância. Por volta de 2000, desenvolveu até um projecto de adaptação de A Marca Amarela para o cinema em imagem real; faltou-lhe o financiamento. E agora, 25 anos passados, o editor e Laurent Durieux propuseram-lhe escrever este álbum com Soja Shillito. Huth e Durieux partilham uma paixão pelo retrofuturismo e chegaram a falar da exposição universal de Nova Iorque de 1964. E Huth chegou a oferecer-lhe um pin original do evento. Foi com surpresa que Huth viu no livro já publicado a reprodução desse pin na contracapa. A Dupla Exposição é uma verdadeira história de amizade, entre Blake e Mortimer e Huth e Durieux.

 

Influenciados pelo filme Viagem Fantástica (que seria depois novelizado por Isaac Asimov), mas também pela famosa série de BD franco-belga Les Petits Hommes, de Pierre Seron, Huth e Shillito acharam vantajoso encolherem Blake e Mortimer para esta aventura. Primeiro porque permitiria na perfeição a Durieux criar imagens inesquecíveis e depois, porque dar-lhes-ia mais liberdade para escrever fora da cronologia das aventuras dos dois heróis. Mas embora o álbum seja um hors-série, não deixa de observar todos os cânones criados por Edgar P. Jacobs para Blake e Mortimer.


E é essa uma das razões que torna este álbum uma verdadeira prenda de Natal para os admiradores dos dois personagens. Temos algo de novo, de original, com os comportamentos, atitudes e estética a que nos habituámos.

 

A outra razão é a arte magnífica de Laurent Durieux. Os leitores já lhe conhecem a paleta de cores do álbum O Último Faraó (Edições Asa), também ambientado no universo de Blake e Mortimer. Mas agora surge este trabalho de amor, onde o ilustrador e designer gráfico belga, particularmente apreciado por Coppola e Spielberg, mergulha verdadeiramente no universo Jacobiano.


O seu retrato do Capitão e do Professor é fiel ao original, mas com um toque próprio. E o mesmo se passa com os vilões. Em todos, “bons e maus”, Durieux respeita as posturas corporais desenvolvidas por Jacobs, bem como as indumentárias que se tornaram “imagem de marca”.


E, no entanto (sendo que o “no entanto” aqui é sinónimo de bom), a frescura da abordagem gráfica ao texto de Huth e Shillito é inovadora, sobretudo pelo desenvolvimento de um “micro” universo retrofuturista que dá a esta aventura de ficção científica um apelo único. Mas também pela capacidade de Durieux de condensar um texto numa ilustração, depurando-o até à sua essência.


Nada como folhearem o álbum numa livraria para logo ficarem apaixonados pela arte de Durieux.


Este é um álbum que se lê e vê com muito prazer, quase com reverência. E até a lombada em tecido ajuda à missa.


Um argumento bem urdido, com muitas piscadelas de olho à série principal, mas que, nem por isso, impede a leitura fluida. Simultaneamente, capaz de inovar e de observar os cânones criados por Edgar P. Jacobs para a série original. Repleto de reviravoltas, o final parece ficar em aberto… talvez a pensar numa continuação para 2026, ano da comemoração do 80.º aniversário de Blake e Mortimer. E que seja com a arte de Laurent Durieux. E que sejamos todos encolhidos para um retrofuturo!

Por Francisco Lyon de Castro.  

 

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