19 abril, 2025

A conclusão de Brigantus pelo olhar de Francisco Lyon

 

Brigantus volume 2 – O Picto

A Rudeza Poética da Entropia das Almas


Caledónia. A Batalha do Monte Gráupio. O General Cneu Júlio Agrícola. Os Brigantes. Os Pictos. Tudo isto faz parte da História da Escócia no tempo do Império Romano. Mais precisamente, se juntarmos todos estes ingredientes, sabemos que corre o ano de 83 d. C. (ou 84), segundo os relatos de Tácito, historiador e senador romano.

Os caledónios e os pictos são tão irredutíveis quanto o personagem de ficção Astérix. São a verdadeira dor de cabeça do Império. De Júlio César (em 55 e 54 a. C.) a Domiciano (em 84 d. C.), 1 ditador e 11 imperadores tentaram subjugar a Britânia, mas as vitórias alcançadas pelas legiões esbarravam na tribo dos brigantes, no norte da Britânia. Em 73, os brigantes sobreviventes da campanha levada a cabo pelo governador Quinto Petílio Cerial são empurrados para norte para a fronteira com a Caledónia (actual Escócia). Ainda assim, o território não é pacificado. É então que, no ano 80, o novo governador, o general Cneu Júlio Agrícola, inicia as suas campanhas militares em território dos brigantes, tendo como projecto mais ambicioso a invasão da Caledónia, que tem o seu auge na sangrenta batalha do Monte Gráupio.

Os anais de Roma contam-nos que até ao ano de 208, com o imperador Sétimo Severo, os romanos assolaram a Caledónia com campanhas ofensivas, sempre infrutíferas. Anos antes, até tentaram separar os brigantes dos pictos e de outras tribos do Norte com a construção do famoso Muro de Adriano.

Mas é o ano de 84 d. C. que aqui nos interessa. O ano em que o general Agrícola envia a sua frota para norte e avança com a sua infantaria ligeira. O ano em que o gigante Melonius Brigantus, antigo legionário romano caído em desgraça, se encontra agrilhoado numa aldeia picta, prestes a ser atacada pelas forças imperiais.

 

É precisamente aqui que a infeliz narrativa de Brigantus é retomada pela dupla de filho e pai, Yves H. (argumento) e Hermann (desenho), neste segundo tomo do díptico que a Arte de Autor acaba de publicar com o título O Picto.

 

Vamos à história!

 

Ano 84 d. C.

Ferido em combate, enquanto fazia ainda parte das tropas romanas, Melonius Brigantus foi recolhido inconsciente às portas da aldeia picta. Pictos aos quais pertence, pois essa era a origem da sua mãe. Mas essa razão não basta para o favorecer. O chefe do clã mantém-no prisioneiro. Como pode ele confiar em Brigantus, um picto que se virou para os favores dos invasores romanos e que agora volta a casa? Um picto recolhido em criança por uma legião que o entregou a uma serva brigante?

 

Brigantus tenta explicar a Gwer, o chefe do clã, quais as razões que o fizeram voltar, bem como os motivos que o movem na direcção da vingança. O gigante conta a Gwer que o acampamento de onde vem está enfraquecido, espera reforços que tardam a chegar e que esta é a oportunidade ideal para os pictos desferirem um golpe mortal nos romanos.

 

Em parte convencido, Gwer deixa a segurança relativa da aldeia em busca dos outros chefes de clã com o intuito de formar uma coligação contra os romanos.

 

Enquanto isso, no acampamento romano impera o orgulho.

 

O praefectus Flavius quer atacar rapidamente a aldeia picta, mesmo antes que cheguem os reforços do general Agrícola. Quer cobrir-se de glória e não deixar que os louros da vitória recaiam sobre o poderoso general. Nisto é secundado pelo optio Vigilius, a quem manda numa expedição de reconhecimento, como batedor, antes que o ataque à aldeia se realize. Vigilius que Brigantus conhece bem como seu atormentador pessoal.

 

Os dois lados preparam-se. A batalha está iminente. Se as legiões de Agrícola não chegarem, as forças estão equilibradas. Pictos e romanos estão convictos da vitória. Mas há muitas variáveis em jogo e Brigantus deve escolher em definitivo um dos lados…

 

 

Yves H. e o seu pai Hermann – decano da Banda Desenhada franco-belga – terminam aqui a história de Brigantus, um díptico que até poderia ser considerado do género péplum, não fosse a inexistência da grandiosidade da civilização romana, da romanização e do fulgor do império. Aliás, é o próprio Hermann que lança o repto ao leitor para que veja Brigantus como um western.

 

Se não, vejam! Estamos na última fronteira do Império, como a do Oeste Selvagem. Nem a terrível fronteira com o Danúbio, em território germânico, se mostrou tão inexpugnável. A guerra faz-se, maioritariamente, pela guerrilha, uma acção bélica de desgaste constante. A romanização é algo insipido, sem sustento. A pax romana não tem aqui lugar e a lei não tem aplicação. E quando tem, é um pouco como a “oeste de Pecos”, onde um dito juiz Roy Bean a aplicava a seu belo prazer. Na Caledónia, perdoem-me o anacronismo, só faltam mesmo os colts a serem sacados, não em duelos ao sol, mas por entre as brumas.

 

O ambiente criado pela narrativa de Yves H. é cru, brutal, sem concessões e, sobretudo, opressivo e até claustrofóbico. Na maior parte das vezes, não há horizontes longínquos, pois a visibilidade não ultrapassa os quatro ou cinco metros e às vezes nem isso. O nevoeiro e a chuva dominam a acção que até parece confinada à Nostromo do Oitavo Passageiro. Como então, parece possível surgir um Alien, um romano ou um picto mesmo ao nosso lado, vindo do nada. E isso serve para os dois lados; o leitor sente-se oprimido pois os fenómenos atmosféricos ajudam de igual forma romanos e pictos; nenhum tem vantagem e o desfecho de qualquer confronto é imprevisível.

 

Este ambiente pesado não é um mero artifício estético por parte de Hermann. É um subterfúgio consciente da narrativa de Yves H. O que se pretende aqui, como já referi num texto anterior dedicado ao primeiro volume de Brigantus, “é mostrar, sobretudo, a fealdade da humanidade e o seu lado de besta desgovernada onde a animosidade constante tem lugar de destaque.” Para que isso aconteça na narrativa, há que eliminar todos os pontos de possível distração e levar o olhar do leitor a focar-se na rudeza dos personagens.

 

Curiosamente, é em Melonius Brigantus, o gigante sanguinário, que vemos lampejos de humanidade e até de sabedoria. Mas isso só o leitor sabe, pois só o leitor tem acesso aos seus pensamentos, numa voz-off poética e contemplativa.

 

Brigantus é um pária. Nunca aceite plenamente pelos romanos, rejeitado pelos pictos, que estão mais próximos do seu sangue, é ao legionário desgraçado que se apresenta, quase de forma cândida, o dilema maior do díptico: de que lado combater? Ao nível humano, é ele o centro de toda a intriga. Ao nível histórico, são romanos contra os “caras azuis” ou pictos. É tudo simples, numa história muito directa, sem tempo para grandes floreados. O resultado é uma falta de requinte, elegância e delicadeza. Mas, afinal, é isso mesmo que se pretende da história de um homem que é considerado por todos como um traidor e que tenta sobreviver nos dois lados do conflito histórico.

 

Mas Brigantus nem pensa que trai. Brigantus, máquina de guerra brutal, nem gosta de conflitos. Brigantus só quer a paz que a vida nunca lhe proporcionou.

 

É nestas circunstâncias que encontramos o ponto forte da narrativa de Yves H. O niilismo absorve qualquer ponto de luz que pudesse advir da esperança que o protagonista tem numa vida melhor. A atmosfera de desespero, tal como faz com as paisagens, engole todos os personagens e regurgita-os, mortos ou estropiados de sentimentos.

 


Na narrativa de Yves H. não há espaço para regressos ao passado. Não há espaço para grandes justificações, porquês ou circunlóquios. O espaço é para a urgência reptiliana da sobrevivência e da crença num futuro mais sereno. Pelo caminho fica a densificação psicológica dos personagens, mas esta torna-se secundária para uma história dedicada à entropia das almas.

 

Entropia que, propositadamente ou não, se reflete também no traço do “javali das Ardenas”. Hermann, o desenhador virtuoso à beira dos 87 anos, que continua a realizar as suas pranchas à mão livre e em cores directas.

 

Como já se disse em relação à narrativa, o ambiente é opressivo e pesado. Para que isso aconteça em termos visuais, Hermann usa o nevoeiro como elemento quase epidémico, que tudo envolve e que parece até invadir o interior das cabanas pictas. Para quem já viu o artista a pintar as suas vinhetas, sabe que isto é conseguido muito por instinto e experiência, com a utilização à “mão livre” das suas cores directas. O resultado, lá está, é a evolução da acção sempre num ambiente pesado, plúmbeo, onde são raras as vezes em que se avista o azul do céu.

 

 

Mas, por vezes, o velho mestre lá nos dá um vislumbre de luz, talvez para enganar os mais crédulos e colocar-lhes na mente a ideia de que a esperança, tal como o céu, deve ser eterna. O que devemos ter em consideração é que os céus de Brigantus são de um azul pálido, sempre com nuvens escuras no horizonte, ou auroras sobre as quais o cinzento parece consumir o amarelo.

 



De resto, Hermann não desilude com os seus famosos nocturnos, nos quais, como sempre, demonstra um domínio perfeito dos pretos e cinzentos.

 

Nem quando quer dar a impressão ao leitor que uma centúria romana é algo de quase majestático, misturando planos picados com contra-picados de forma inteligente, como se pode verificar na segunda imagem abaixo. Ou quando faz surgir no horizonte, imponente, a frota do general Agrícola.

 




Muitos exemplos positivos podem ser dados acerca da arte de Hermann neste segundo volume de Brigantus. Mas talvez o melhor seja o que se refere à mise-en-scène das batalhas. A colocação em cena dos participantes, antes e durante o choque dos dois lados, é algo de sensacional. O leitor nunca vê a batalha como um todo porque o artista não o permite. Antes, ele foca a sua “câmara” em grupos de homens, aumentando o efeito da carnificina na mente do observador. A disciplina da centúria romana desaparece no combate corpo-a-corpo e a anarquia passa a reinar no campo de batalha. Os cinzentos passam a ser tingidos pelo rubro do sangue e a esperança, mais uma vez, parece não ter lugar nesta história.

 


Mas se a arte de Hermann pode ser aqui apreciada em toda a sua magnitude, há que dizer que também pode ser observada no seu lado menos conseguido. Ao longo do livro, várias vezes, é gritantemente visível a disformidade de alguns personagens bem como a desproporcionalidade entre elas. E até algumas perspectivas são falhas para um olhar mais atento.

 

Mas, a bem da verdade, Hermann até disto tira partido, pois o ambiente pesado fica mais pesado, e os personagens grotescos ficam mais grotescos. Parece que tudo e todos são personagens de um pesadelo que conseguiram passar para o mundo real.

 

Uma última palavra para as duas cenas finais. Numa, Brigantus foge num esquife, durante a noite de tempestade. Na outra, vê-se chegado a uma praia luminosa e a um futuro esperançoso. O interessante é ver como Hermann faz a transição entre uma e outra cena e o choque que é ver a paleta de cores utilizada ao longo da obra a dar por fim lugar a uma nova paleta.


Ao longo dos anos, Yves H. já escreveu 22 álbuns para o seu pai desenhar. Mas nunca se tinha aventurado pela Antiguidade Clássica.

 

Consegue fazê-lo agora com este díptico. Mas Brigantus quebra as convenções do péplum e coloca o centro da acção numa Caledónia brumosa com céus de chumbo. A grandeza do Império Romano não está presente. “Temos aqui uma Roma sombria, longe de casa.”


O clima é agreste. Os personagens são rudes e grotescos. As suas feições são duras e abrutalhadas. O ambiente é opressivo e de tensão constante. E o objectivo máximo de ambas as partes é a vingança.


O díptico lê-se de um fôlego, em parte pelo típico argumento minimalista a que Yves H. já nos habituou, e em outra parte pela ausência de longos recitativos. Mas também pelas cenas de acção bem coreografadas e violentamente sanguinárias.


Acima de tudo sobressai Brigantus, no seu percurso de vingança e redenção. Brigantus, o portador de luz que a esconde dentro de si. O bardo que é ouvido apenas por si próprio. O homem, monstruoso por fora, mas cuja bestialidade do seu ser não consegue penetrar a carapaça dos seus pensamentos.
 

Brigantus quer sobreviver ao mundo que o rejeita e o coloca em perigo. Brigantus não quer ser selvagem nem civilizado. Enquanto à sua volta as almas se entregam, amorfas, ao princípio da entropia, Brigantus, com a sua rudeza poética, só quer viver em paz.


 

EXTRA

Com quase 87 anos, Hermann mantém-se imparável. Neste momento, tem já mais de uma dezena de pranchas terminadas da sua nova obra com argumento de Yves H. O título provisório é Cartagena. Não a do Chile, da Colômbia ou de Espanha. Uma Cartagena ficionada.

Deixo-vos a primeira prancha.


 

 Por Francisco Lyon de Castro

 

4 comentários:

diogoi55 disse...

Sou um fã da arte do Hermann, há já muito tempo! Nesta obra, atendendo à sua idade avançada, há grandes e graves lacunas no desenho e sobretudo nas feições dos personagens... Que saudades do seu período áureo dos Lobos de Wyoming...

Nuno Neves disse...

A idade não perdoa, e já na série Duke se notava o pouco rigor na definição das feições das personagens. Continua a trabalhar bem a cor mas o desenho já vai perdendo aquela perfeição.

Anónimo disse...

87 anos e mão livre?!... É muito bom continuar a ver um artista desta envergadura,a produzir e a criar.

Anónimo disse...

Talvez a névoa e o "peso" do trabalho, neste livro, sejam um espelho do próprio autor de tão avançada idade