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09 junho, 2025

Homem de Neandertal Ou a arte do diálogo entre espécies


Há memórias que têm tanto de fascinante como de inquietante.


E é este sentimento misto que sinto ao recordar o meu primeiro embate na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O primeiro dos primeiros tempos foi com a cadeira de História das Civilizações Pré-Clássicas, com o maior especialista português na matéria, o Professor José Nunes Carreira. A aula, praticamente, resumiu-se ao Professor escrever no quadro a bibliografia aconselhada, maioritariamente em… alemão.


Mas se no primeiro tempo os meus colegas e eu apanhámos um susto, no segundo foi pior. Apareceu-nos o então jovem Professor João Zilhão, especialista em Pré-História, daqueles académicos que não se sente satisfeito sem ir para o campo, cavar em sítios arqueológicos e replicar experiências de um passado muito remoto de modo a entrar no espírito da coisa. Para ele, termos 11 a 13 valores nas frequências era sinal de estudo e inteligência. Se bem me recordo, a nota máxima que deu esse ano foram 14 valores. Ora, o pânico era geral entre os estudantes; a exigência era tal que a maior parte sentia a inquietude perante a frequência. Mas se isso era verdade, o contrário também era (por mim falo). Ter aulas com o Professor Zilhão era algo fascinante. Primeiro porque era bom professor; segundo porque o seu fascínio pela matéria acabava por me contagiar.


Aqui chegado, posso agora falar-vos, caros leitores, do livro de André Diniz, Homem de Neandertal, publicado pela Escorpião Azul.


São 90 páginas de banda desenhada muda, antecedidas por um prefácio do autor, que serão agora escrutinadas à lupa deste pobre admirador do Professor Zilhão.

 

Vamos à história!

 

40 000 a 30 000 anos a. C.

 

Uma tribo Neandertal abandona a zona gelada onde habita e ruma ao Sul, para paragens menos inclementes. O pequeno grupo, encabeçado por caçadores armados com lanças de ponta tosca, comporta uma mulher grávida e uma criança. No caminho, aquele a que chamarei de Contemplador fica para trás a observar, fascinado, uma borboleta em voo. É admoestado pelo líder do grupo; é necessário prosseguir sem interrupções.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

Entretanto, afastado do grupo e, por isso, mais vulnerável, sofre um ataque de um lobo. Apesar disso, consegue afastá-lo mesmo a tempo de perceber que o grupo descobrira no bosque por onde se embrenhara uma manada de antílopes de grande porte. O regozijo é enorme. Começa a perseguição. Os antílopes partem em debandada; os neandertais correm atrás deles de lanças em riste. O Contemplador, que os flanqueou, acaba por tropeçar e ser pisoteado pela manada. O Líder arrasta-o para terreno mole e, com a ajuda das lanças, abrem uma cova onde o enterram. Mas, para contentamento de todos, o Contemplador está vivo e tem apenas uma perna ferida. O grupo não o deixa para trás e ajuda-o a prosseguir caminho. 

Passou mais uma lua e a tribo está acomodada na sua nova caverna. É altura de partir para nova caçada. Mas o Contemplador, com a perna ferida, não os pode acompanhar. Mesmo assim, com a ajuda de um cajado, aventura-se para fora da caverna e fica fascinado com as marcas que vai deixando pelo caminho argiloso, bem como com as figuras que consegue rabiscar com o cajado.

À noite, o grupo regressa à caverna e banqueteia-se com a caça. Entretanto, atrasado como sempre, chega o Contemplador. Sem a sua parte da caça, pede um pouco a um dos seus companheiros. Este recusa, mas o Líder intervém e o Contemplador acaba por ter a sua refeição.

Mais um dia, mais um passeio com o seu cajado. Pelo caminho encontra uma pedra como nunca viu antes, repleta de estranhos rabiscos. Mais tarde, mostra-a ao grupo, mas todos ignoram o seu entusiasmo. Para ele, aquela é a pedra que mudará a sua vida e que o levará por aventuras que ainda hoje tentamos descortinar…

Tenho cá a sensação que o autor André Diniz não teve João Zilhão como professor. Mas é inequívoco que este seu trabalho envolveu uma pesquisa séria que não é detectável no seu prefácio e que talvez não o seja numa primeira leitura. Acresce o facto de a Banda Desenhada ser muda e não ter por isso a ajuda das falas que poderiam evidenciar mais o seu trabalho como “investigador”.

Em o Homem de Neandertal encontramos ecos do romance O Clã do Urso das Cavernas, de Jean M. Auel e do magnífico filme de Jean-Jacques Annaud, A Guerra do Fogo. Mas a obra tem argumento e méritos próprios.

A narrativa acompanha o quotidiano de um pequeno grupo de neandertais na sua luta pela sobrevivência diária. Mas esta narrativa é muda; nem sequer tem onomatopeias. Ora, o que pode parecer uma simplificação na Banda Desenhada é, muitas vezes, a origem de confusão na cabeça do leitor, sobretudo porque determinadas cenas, com a ausência de texto, podem tornar-se confusas e pouco explícitas. Não é o caso do Homem de Neandertal! A narrativa aqui é clara e a trama facilmente compreensível. Por isso, este livro pode ler-se num ápice e com agrado.

Mas a obra de André Diniz tem muito mais do que pode parecer à primeira vista. Desde logo, é fácil detectar o período em que se passa a acção se atentarmos nas primeiras páginas com montanhas repletas de neve e gelo. Estamos no último período glacial – entre 100 000 e 12 000 atrás – que ficou conhecido como glaciação Würm. Mas o autor fornece-nos outro dado – o contacto entre o homem de Neandertal em declínio e o homem de Cro-Magnon em ascensão –, o que sugere um período temporal mais reduzido, compreendido entre 40 000 e 30 000 anos a. C., tendo em conta a existência de arte rupestre.

André Diniz mostra um grande cuidado na caracterização do grupo de neandertais e nas diferenças que os distanciam dos cro-magnon (que já se inserem no grupo dos humanos modernos). Desde logo, o mais evidente são as características físicas diversas dos dois grupos. Enquanto os neandertais são mais pequenos e “atarracados”, de nariz curto e abertura nasal ampla, testa baixa e arcadas supraorbitárias proeminentes e um esqueleto robusto (entre muitas outras características), os cro-magnon são mais altos, de fronte arredondada e quase vertical, mandíbula e dentes de tamanho pequeno e ossos dos membros relativamente delgados.

 

 

 

 



Se bem que ambos os grupos sejam caçadores-recolectores nómadas, André Diniz marca bem as diferenças entre Neandertal e Cro-Magnon. Tecnologicamente, as lanças do grupo do Contemplador são toscas e não permitem arremesso. Por isso, a técnica de caça que vemos na obra é a da perseguição e do confronto sem distanciamento, o que levaria a uma taxa de mortalidade muito maior do que a que acontecia no grupo de cro-magnon. Estes possuíam já uma técnica mais avançada de produção de lanças, fixando a ponta com resina e permitindo o arremesso à distância. Para além disso, os materiais das pontas não se resumem à pedra lascada e incluem chifre de rena e marfim. É-lhes também conhecida a produção de arpões e de anzóis.

De igual modo, há uma grande diferença entre as roupas de uns e de outros. Enquanto a dos neandertais é rude, a dos cro-magnon é mais sofisticada e cosida, graças à invenção da agulha de osso.

Também na maneira de comer há diferenças substanciais. O Neandertal come carne crua e é-lhe até reconhecida a antropofagia, com se pode ver no álbum. Já o cro-magnon cozinha a sua carne como comprovam os vários fogos rústicos encontrados nas suas cavernas e que também são visíveis na obra de André Diniz.

Também não falha ao autor ilustrar a capacidade de cuidar dos doentes já no homem de Neandertal, como se pode ver pela atenção dispensada ao Contemplador ferido e doente. O mesmo se passa com os rituais funerários comuns aos dois grupos, se bem que o dos cro-magnon revele uma ritualização mais elaborada, com contas, ferramentas e conchas a serem enterradas com o morto.

Mas, quanto a mim, o ponto alto do Homem de Neandertal revela-se duplamente na abordagem magnífica feita à arte rupestre e ao tratamento dado à interacção entre os Neandertal e os Cro-Magnon, dois acontecimentos essenciais na história da humanidade.

É comummente aceite que a arte rupestre surgiu no Paleolítico Superior há cerca de 40 000 ou 30 000 anos – precisamente o período em que o homem de Neandertal é “destronado” pelo de Cro-Magnon. E se segundo Samuel Noah Kramer, a história começa na Suméria com a invenção da escrita cuneiforme 3 400 anos a. C., para mim, a linguagem universal bem pode ter começado com a arte rupestre cerca de 35 000 anos antes.

Também com o tratamento dado à arte rupestre, André Diniz é cuidadoso e informado. Assim, não corremos o risco de ver representadas nas paredes das cavernas quaisquer elementos anacrónicos ou descontextualizados da zona geográfica onde se passa a acção.

Mais a Norte seria possível ver representados mamutes ou rinocerontes-lanudos, mas aqui o que vemos está adequado às paragens um pouco mais a Sul: cavalos, cervídeos de grande porte, bisontes, javalis, ursos e lobos. De igual modo, é representada a figura humana a lutar, a dançar, mas, sobretudo, a caçar. Também se pode observar a representação de plantas bem como sinais gráficos abstractos e palmas da mão. E André Diniz vai ainda mais além, mostrando duas tecnologias de pintura rupestre – o carvão e a argila ocre.

Mas o essencial da arte rupestre na narrativa de Homem de Neandertal resume-se a uma palavra: comunicação. Pois, é através da arte que o Contemplador (Neandertal) consegue comunicar pacificamente com a tribo Cro-Magnon. Através da linguagem simbólica destes últimos, o Contemplador percebe o seu quotidiano e os seus hábitos que, afinal, não diferem assim tanto dos seus. Com André Diniz, a arte rupestre surge como uma espécie de cimeira da paz com resultados definitivamente positivos.

E à arte pictórica, o autor junta-lhe a arte musical através do uso da flauta. O som produzido pelo mais antigo instrumento musical do mundo deixa maravilhado o nosso Contemplador.

A arte rupestre tem o lugar central na história que André Diniz nos conta em o Homem de Neandertal. Mas há uma trama paralela que nos conta parte da evolução da humanidade. E, mais uma vez, o autor não abdica de todo o rigor científico.

Entre os académicos e investigadores actuais, subsiste a dúvida do que terá levado à extinção do homem de Neandertal. O facto não é de importância menor pois, se tal não tivesse acontecido, existiriam hoje duas espécies de Homo, o neanderthalensis e o sapiens. E, com certeza, a evolução da humanidade ter-se-ia processado de outra forma.

O certo (até que surjam novas descobertas arqueológicas) é que o Homem de Neandertal terá desaparecido “misteriosamente” há cerca de 30 000 anos. E os indícios estão quase todos representados na obra de André Diniz. Desde logo, o seu pequeno tamanho populacional e o endocruzamento que leva à consanguinidade e, por consequência, à criação de comunidades menos aptas, mais frágeis e, inclusive, atreitas a má-formações físicas e à infertilidade. Atentem ao resultado do parto da Neandertal e à maneira como o Líder resolve o assunto.

Outro dos factores considerados pelos especialistas como possível motivo para a extinção do Homem de Neandertal é a doença e a epidemia, nomeadamente pelo contacto com o Homem de Cro-Magnon. Também aqui, André Diniz não deixa passar em branco o factor dos agentes patogénicos, com consequências fatais no enredo.

Habitando o mesmo ecossistema, é quase certo que as duas espécies competiam por recursos, nomeadamente a caça. E também é provável que tal competição gerasse confrontos estre as duas populações. Ora, os Cro-Magnon eram mais numerosos e possuíam vantagens evolutivas, tecnológicas e até cognitivas, pelo que o desfecho dos confrontos penderia maioritariamente a favor dos Cro-Magnon. Mais uma vez, André Diniz expressa esta teoria na sua obra.

Também há a hipótese da “extinção” do Homem de Neandertal se ter dado pelo cruzamento e assimilação pelo Homem de Cro-Magnon – a chamada miscigenação. Mas como André Diniz não aborda o tema na sua obra, deixo-vos aqui apenas a menção ao assunto e a remissão, para os mais interessados, para a pesquisa acerca da “Criança do Lapedo”, importante descoberta arqueológica feita em território português que parece provar a teoria da miscigenação e que é hoje considerada tesouro nacional.

Com excepção do parágrafo anterior, tudo o que acima se disse é tratado na obra de André Diniz, Homem de Neandertal. A leitura despreocupada do álbum apresenta-nos apenas uma aventura passada nos primórdios da humanidade, na qual a arte rupestre tem importância decisiva na interacção de duas espécies.

Mas este livro é muito mais do que isso. É evidente a pesquisa meticulosa do autor sobre as características físicas, os costumes, a tecnologia e o sistema de crenças das duas espécies. Mas ao contrário deste texto que agora vos apresento e que pode parecer fastidioso, a obra de André Diniz flui sem o que poderia ser o entrave da palavra. E a ajudar a esta fluidez está a sua arte angulosa, quase desconcertante, pejada de elementos geométricos dos quais se destaca o triângulo.

Homem de Neandertal de André Diniz é uma obra magnífica a vários níveis, mas sobressai pela maneira como coloca a Arte Rupestre no centro da acção e a transforma numa espécie de arte do diálogo entre espécies.

Parece que o Homem de Neandertal se extinguiu, mas parte dos seus genes continuam no nosso código genético. Por que será?

 

Por Francisco Lyon de Castro

 

29 maio, 2025

Made in Abyss pelo olhar de Francisco Lyon

 

Made in Abyss, volumes 1 a 3


O Regresso da Velha Magia

 



Made in Abyss é um maravilhoso regresso ao passado…

 

Vai longe o tempo em que o engenho artístico japonês lançou o seu encanto sobre mim. Por essa altura, nem sequer imaginava que a origem daqueles desenhos animados era nipónica. Primeiro foi o Vickie, o Viking, depois a Heidi seguida do Marco e a culminar na Abelha Maia. E um pouco mais tarde, Conan, o Rapaz do Futuro fez-me tomar consciência que do outro lado do mundo vinham coisas mágicas que estavam a moldar a minha infância. Era o Animé, os desenhos animados japoneses.

 

Estes eram os anos da rapidez (ainda que não desse por ela) e pouco depois fui surpreendido por os Mangá, a Banda Desenhada japonesa. Fiquei fascinado pela complexidade da história e pelo desenho “estranho” de Akira, encantado pela saga pós-apocalíptica de Mother Shara, pela realidade cyberpunk de Ghost in the Shell e por várias outras histórias.

 

E depois, devo dizer, tudo se tornou demasiado banal. O estilo artístico, com umas quantas variações, parecia-me todo ele muito semelhante e as histórias (pelo menos as mais famosas) tinham uma penosa proximidade com a dimensão das telenovelas que, facilmente, chegavam aos 300 capítulos.

 

Generalizar é tão perigoso quanto redutor e, com certeza que há muitos animé e mangá que são dignos de nota, sobretudo ao nível da inventividade narrativa. Mas o facto é que me desencantei.

 

Claro está que, fora desta apreciação estão as produções do Estúdio Ghibli que me encantam como se eu ainda fosse uma criança.

 

E é então que surge Made in Abyss. Assim que vi as primeiras imagens do animé, o velho encanto voltou! E agora, finalmente, tenho eu e todos os leitores acesso ao mangá de Akihito Tsukushi em português, mérito da editora A Seita que já lançou os três primeiros volumes da saga.

 

Originalmente, a obra tem como público alvo a faixa etária masculina dos 20 aos 50 anos - os seinen (os japoneses são muito precisos nestas coisas) -, mas, na verdade, Made in Abyss pode e deve ser lido por leitores femininos e masculinos de todas as idades. É muito provável que filhos e netos se deixem encantar como aconteceu comigo há tantos anos e voltou a acontecer agora.

 



Vamos à história!

 

Foi há 1900 anos que surgiu, nas imediações da que é hoje a cidade de Orth, um poço gigantesco com mais de 1000 metros de diâmetro. Um poço que é conhecido como o Abismo.

 

Ninguém conhece a sua profundidade, embora a sua exploração decorra há séculos.

 

Indícios de uma antiga civilização, estranhas relíquias e tesouros, e seres tão valiosos quanto perigosos atraem centenas de exploradores de várias cidades que, com uma valentia desmedida, enfrentam as várias camadas do Abismo bem como o seu poder sobrenatural. O certo é que, aparentemente, nunca ninguém conseguiu chegar ao fundo do Abismo, e aqueles que desceram mais camadas foram também os que nunca regressaram à superfície.

 

Foi assim que a mãe de Riko desapareceu há dez anos e, desde então, a jovem vive no Orfanato da Guilda, local onde as crianças são aprendizes de exploradores.

 

Embora muito tempo tenha passado, Riko acredita que a sua mãe está viva. O seu objectivo é encontrá-la, mas, para que isso seja possível, ela tem de subir na hierarquia dos exploradores para ter direito a tentar chegar ao fundo do Abismo. Assim, é essencial que cumpra com sucesso as missões que lhe são destinadas.

 

Um dia, no decorrer de uma dessas missões, e enquanto está a ser atacada por um Mandíbula Encarnada, Riko dá de caras com um rapaz desmaiado, um estranho rapaz meio humano meio robot que terá uma importância crucial na vida de Riko…

 

 

É difícil não sermos seduzidos logo de imediato pelo primeiro volume de Made in Abyss. Há um certo charme e uma personalidade muito própria inegáveis, e um tom nostálgico que apela às grandes aventuras maiores que a vida.

 

Esta é daquelas aventuras de que não estamos à espera e que, no entanto, ansiamos que surja algures no tempo, num acto de fé pela antiga magia da infância e da juventude. Quando acreditamos que já não haja nada que nos empolgue, surge Made in Abyss.

 

Akihito Tsukushi, argumentista e desenhador, sabe criar um universo de raiz credível e cativante. E consegue apresentá-lo rapidamente e com detalhe nas primeiras páginas da obra. Mas com o universo apresentado, as suas lendas principais definidas e os seus protagonistas postos em campo, Tsukushi desacelera a narrativa e leva depois o seu tempo a mostrar-nos como se organiza a sociedade dos exploradores e as implicações da existência do Abismo na vida dos personagens, sobretudo na de Riko.

 

 

Esta narrativa a dois tempos (o rápido e de velocidade de cruzeiro) permite ao leitor ter sensações fortes ao mesmo tempo que vai conhecendo os personagens, as particularidades das suas vidas e os muitos mistérios que envolvem o Abismo. E é assim que a intriga é imergida neste universo particular e se prende aos personagens.

 

A história, bem urdida, mostra ter um percurso bem definido sem que, no entanto, permita que o elemento surpresa esteja ausente. Para isto contribui o facto de este mundo fantástico do Abismo ser um mundo absolutamente original. A qualquer momento, o leitor é confrontado com dados da sociedade dos exploradores, como é o caso da sua organização hierárquica através de apitos coloridos, sendo o vermelho o mais baixo e o branco o mais alto. Mas também é confrontado com um bestiário absolutamente inventivo, povoado de estranhos seres como os Bico-de-Martelo e os Mandíbula Encarnada ou maravilhado com as diferentes camadas do Abismo e as suas características funestas.

 

Todos estes elementos são depois utilizados na narrativa para dar vida à Riko, ao mistério que envolve o desaparecimento da sua mãe e à missão clandestina que a jovem quer levar a cabo para encontrar a sua progenitora… ou o que reste dela.

 

Para tornar as coisas ainda mais interessantes, Akihito Tsukushi coloca no final de cada capítulo uma página temática, um pouco ao estilo de grimório, onde nos apresenta o Abismo, as suas diferentes camadas, alguma fauna e flora, a classificação por apitos, etc. E estas páginas servem tanto para fazer o leitor respirar da leitura como para o embrenhar cada vez mais no universo de Made in Abyss.

 

No segundo volume, Riko e Reg, o rapaz meio robot que sofre de amnésia, continuam a sua exploração levando-nos cada vez mais para o fundo do Abismo. Desconhecedores do que vão encontrar, as suas descobertas são feitas ao mesmo tempo que o leitor, tornando assim a narrativa mais empolgante e envolvente. O mesmo se passa com os vários encontros inquietantes que servem para enriquecer um pouco mais a fauna e flora do estranho mundo do Abismo.

 


Apesar disso, o enredo simplifica-se, dando-se mais importância à aventura em si. Contudo, Akihito Tsukushi não deixa de lado revelações surpreendentes e algumas até tristes, criando uma narrativa mais negra.

No fim, paira o desejo de vermos elucidados alguns dos mistérios e segredos que estão em suspenso no universo desta série densa.


Com o terceiro volume, entra-se numa nova fase narrativa. Tsukushi aumenta a dose de “darkness” e não poupa a ela nenhum personagem, quer se trate dos protagonistas quer sejam recém-chegados à história.


Riko e Reg percebem que as hipóteses de regressarem alguma vez à superfície são ínfimas. Mas nem por isso renunciam à sua demanda e mergulham num nível ainda mais perigoso do que os anteriores. Certas cenas são de uma enorme violência, quer ela esteja explícita ou implícita.

 

 

Todavia, essa violência é utilizada também como um recurso narrativo para reforçar o ambiente geral da história, o suspense e a tensão. O leitor, ao temer pela vida dos protagonistas, agarra-se a eles e duvida do bom desfecho da aventura. Para isso contribui também os constantes acrescentos no bestiário de Made in Abyss, com criaturas desconhecidas cada vez mais perigosas.


Quanto à arte, o traço de Akihito Tsukushi é muito detalhado e pouco anguloso, o que nos dá uma sensação reconfortante e doce. Ele consegue criar personagens “fofinhos” num mundo cão, repleto de perigos e insensível à fragilidade humana. Os rostos dos protagonistas têm um aspecto ternurento que contrasta em muito com as agruras do Abismo.

 


E os ambientes, mercê do referido detalhe, são muito bem conseguidos, quer se trate de interiores ou dos exteriores no Abismo.

 

Por outro lado, independentemente de estarmos ou não perante cenas de acção, a planificação das pranchas é dinâmica e, como tal, a sua leitura é cativante e nada monótona. Já as cenas de acção em si surgem com uma rapidez surpreendente e conseguem aguentar três ou quatro páginas sem perderem o ritmo ou nitidez de traço.

 

 

Por fim, a obra ganha muito com a utilização dos meios-tons que lhe conferem um aspecto mais detalhado e com mais profundidade. A isto há que acrescentar o domínio das sombras e da iluminação por parte do autor.

 

Há um lado poético que emana do todo, devendo muito aos cenários e às criaturas dos diversos níveis, sempre inventivos e cativantes.

 

É impossível não nos sentirmos levados pela aventura que nos leva por abismos infernais e que não cessa de maltratar personagens de rosto doce e corpo frágil. O resultado é de uma crueldade hipnótica.

 

Made in Abyss fez-me reconciliar com a banda desenhada japonesa. A história promete e intriga; a narrativa é inteligente e dinâmica; a arte é cativante, detalhada e tem o leitor em consideração.

Lamento apenas que o formato não seja um pouco maior pois a arte de Akihito Tsukushi teria tudo a ganhar.


De qualquer modo, para mim, este é o regresso da velha magia que só poderia ser suplantada pela publicação trimestral dos restantes volumes. Afinal, um fã não deve ser deixado muito tempo sem alimento…


Sem dúvida, um começo mais que encantador, numa saga que tem tanto de cruel como de poético.

 

 
Por Francisco Lyon de Castro