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domingo, 17 de agosto de 2025

Com sabor gótico-vitoriano

 Tales From Nevermore

 


Devo confessar que dizer que sou pouco adepto do género “Terror” é manter na incerteza o que o advérbio realmente significa para mim nesta circunstância. Dizer que sou pouco é muito pouco.

 

Para mim, claro está, o “Terror” é quase pornográfico no sentido que é sempre a mesma coisa com umas quantas variações que permitem afirmar diferenças. Parece que o objectivo, ao invés do excitar, é assustar, criando aqui e ali uma sensação de desconforto e de pânico.

 

Claro que me vão falar do Saw e da inventividade daquelas maquinetas de decepar, triturar, cegar e sufocar. É verdade! São muito bem pensadas. E…?! Ou talvez me lembrem da saga do Pesadelo em Elm Street e do assassino que aparece em sonhos e que os transporta para a vida real, Freddy Krueger. Ou do Sexta-Feira 13 ou da Freira ou… ou… ou… Lamento, mas na base, para mim são todos iguais, tendo apenas o objectivo de assustar ou provocar o grito.

 

Talvez resida aqui, no grito, a minha nenhuma afinidade com o género. É que tinha uma amiga que ia ao cinema com o meu grupo da adolescência. Não só gritava desalmadamente à mínima cena “de susto”, como se agarrava repentinamente a quem estivesse ao seu lado. Conseguia sempre assustar mais do que o próprio filme. E eu, talvez tenha ficado traumatizado, sendo que a terapia nesta fase já vem tarde.

 

E, no entanto, há obras que são classificadas como sendo de terror e conseguem ultrapassar o género literário. É o caso de Drácula, o romance epistolar de Bram Stoker, ou o Frankenstein de Mary Shelly, A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe, o Médico e o Monstro de Robert Louis Stevenson. Curiosamente, todas elas se inserem no movimento gótico do século XIX e todas parecem ter um sabor vitoriano, embora a obra de Shelly anteceda a subida de Vitória Eugénia ao trono britânico. Mas também uma criação mais moderna como é Hellboy de Mike Mignola ultrapassa a classificação de terror que lhe foi atribuída e é mais uma magnífica série de aventuras repleta de monstros e demónios que têm o destino do mundo nas mãos. Curiosamente, um dos spin-off da série, Sir Edward Grey, mergulha também num ambiente gótico e vitoriano, sendo o personagem central um investigador do paranormal.

 

Falar destas obras e não mencionar O Corvo, também de Allan Poe, seria uma injustiça. Até porque é um corvo, o Vincent, que mais que um narrador, é o guia que nos leva pelos seis contos que compõem Tales From Nevermore, a obra da autoria de Pedro N. e de Manuel Monteiro que a Ala dos Livros publicou recentemente.

 

Sem gritos ou sustos…

 

 

Vamos às histórias!

 

Como já se disse, são seis histórias curtas que nos são apresentadas ao jeito de antologia pela dupla Manuel Monteiro e Pedro N. Na verdade, a dupla assina os contos 2, 4 e 6, sendo que o argumento está a cargo de Manuel Monteiro e o desenho é da lavra de Pedro N. Já os contos 1, 3 e 5 são da inteira autoria de Pedro N. que alia o talento artístico ao da escrita.

 

Não irei, desta vez, fazer um qualquer pequeno resumo de cada uma das histórias pois seria a melhor maneira de estragar o efeito que provocarão no leitor. Por outro lado, posso e vou salientar aquilo que torna esta obra em algo coeso e bem orquestrado.

 

Desde logo, as diferenças narrativas entre os dois autores são óbvias. Enquanto sou tentado a classificar as diferentes narrativas de Pedro Nascimento como estando mais próximas do estilo do terror gótico-vitoriano, já as de Manuel Monteiro inserem-se num estilo mais directo e contemporâneo. E de nenhuma forma afirmo isto no sentido de crítica negativa. Antes pelo contrário. O leitor tem assim duas vozes distintas, num mesmo livro, a contar-lhe diferentes histórias. De algum modo, saímos enriquecidos desta leitura. Ainda para mais porque, de forma inteligente, as histórias surgem intercaladas em termos de autoria, o que permite experimentar diferentes cadências narrativas.

 

Por outro lado, não esperem ver em Tales From Nevermore o gore ou splatter tão apreciado em certos filmes de terror. Aqui, quando há sangue ou mutilações é porque são “necessárias” à progressão narrativa. E, mesmo assim, em termos gráficos nem sempre são explícitas, recorrendo-se ao contraluz ou a sequências gráficas quase abstractas, como acontece respectivamente no conto Lisandra e em A True Angel.

 


Outro elemento de coesão da obra é o facto de todos os contos terem o chamado twist ou reviravolta final. E no caso de Tales From Nevermore, a reviravolta é mesmo final. Desengane-se o leitor se pensa que as histórias parecem resolvidas a algumas pranchas do fim. O melhor é aguardar pela reviravolta da reviravolta – sempre inventiva e desconcertante.

 

Por fim, o elemento de coesão mais evidente é o elo de ligação entre os contos – o corvo Vincent. É ele o nosso anfitrião no cemitério de Nevermore, levando-nos de campa em campa, passando por jazigos e mausoléus, dando voz àqueles que estão aí sepultados e às suas histórias. E se imaginarmos a voz e a dicção de Vincent, só o podemos fazer trazendo à lembrança Vincent Price. Já agora, num breve aparte, este corvo Vincent que lembra o “Raven” de Edgar Allan Poe que crocita incessantemente “nevermore”, remete-nos também para S. Vicente, padroeiro de Lisboa que teve a embarcação que trouxe o seu corpo para a capital acompanhada por dois corvos. E ainda para o bem conhecido herói português de banda desenhada O Corvo que tem como alter-ego, precisamente, Vicente.

 

O interessante nos momentos em que surge Vincent, no começo e fim de cada conto, é que não só estabelece o tom da narrativa como nos oferece uma certa moral justificadora das acções.

 

Em termos dos argumentos, é notório que os dois autores tiveram o cuidado de criar uma ambiência que passa de conto para conto. E tal não é coisa pouca, pois cada história não podia ser mais diferente da anterior. E, no entanto, o leitor sente aquela estranha unidade, a tal coesão que nos permite regressar a Nevermore em busca de mais narrativas.

 

Quanto à arte realista de Pedro N., em vários momentos lembra aquele traço detalhado dos ilustradores do século XIX que sombreavam e davam texturas através de diferentes tramas de traços. Esta técnica não só dá ao leitor a percepção de pormenor intrincado como, de igual modo, proporciona uma experiência visual que nos remete para a ilustração oitocentista – da qual um dos expoentes máximos foi Gustave Doré.

 

Particularmente bem conseguidas estão as cenas cuja composição é mais complexa. E é aqui que Pedro N. melhor mostra o domínio das sombras e das tramas, como se pode verificar na imagem seguinte retirada do conto A True Angel.

 


Mas as melhores pranchas (nem todas) estão reservadas para Vincent e é nelas que Pedro N. mostra o melhor da sua arte. Arte que casa na perfeição com o discurso directo de Vincent para com o leitor, criando um ambiente intimista e, por isso, envolvente. Nas páginas de Vincent, o leitor sabe sempre que vai participar de algo e, inclusive, que vai ser julgado pela leitura que faz de cada conto.

 

Uma nota ainda para as homenagens (penso que o são) que Pedro N. presta a dois artistas gráficos contemporâneos: Frank Miller e Georges Bess. Do primeiro, autor sobejamente conhecido de Daredevil, O Regresso do Cavaleiro das Trevas, Sin City e 300, Pedro N. adopta o seu traço nervoso para criar o frontispício do conto Lisandra. Do segundo, autor conhecido em Portugal pelas obras Drácula, Frankenstein e O Corcunda de Notre-Dame, Pedro N. utiliza o seu tipo de traço e composição usado em Drácula para criar o frontispício de Family Ties.

 

Em resumo, Tales From Nevermore tem potencial de série e ambiência num género muito popular, o terror. Os seis contos estão escritos de forma inteligente e oferecem-nos sempre uma reviravolta sucedida por uma derradeira reviravolta. O traço de Pedro N., para além de eficaz, é realista e detalhado.

 

A edição da Ala dos Livros, como é hábito da editora, é muito cuidada. A capa é efectuada com um cortante central que cria o efeito de moldura. Para além disso, tem gravação a seco em alto relevo na tela preta. O efeito é o de um grimório ou de um livro que se mandou encadernar como peça única. O pormenor do fitilho negro também ajuda ao efeito.

 

Uma boa estreia da dupla Manuel Monteiro e Pedro Nascimento… com sabor gótico-vitoriano.

 

Por Francisco Lyon de Castro. 

 

 



domingo, 13 de abril de 2025

A Piada Final?

Batman – Três Jokers



Se há coisa que gosto nas minhas leituras é ser apanhado desprevenido, ser levado à quinta essência, não acreditar no que estou a ler ou a ver (no caso da BD). Pois foi exactamente isso que aconteceu quando li os três volumes que compunham Batman – Três Jokers na sua versão original da DC Comics de 2020. E depois, não contente, acabei por adquirir também a versão em capa dura.

A história decorre no universo de Batman e tem seis protagonistas. Seis! Pode ser lida individualmente, mas aqueles que acompanham o Cavaleiro das Trevas tirarão dela um superior proveito.

Antes de Três Jokers

Apenas antecedido pelo Super-Homem, Batman sucedeu-o após 13 meses. Os dois iniciaram a época dos super-heróis da indústria de banda desenhada norte-americana. Batman apareceu pela primeira vez em Maio de 1939 no número 27 da Detective Comics. Mas ao contrário do Super-Homem, o Homem-Morcego teve, desde logo, uma galeria de vilões que se tornaria icónica. Menos de um ano depois, aparecia o Joker, em Abril de 1940, no Batman número 1, onde é dada a conhecer a origem do Batman e a Mulher-Gato faz a sua primeira aparição.

A criação de Joker está envolta em controvérsia. Cada um dos seus criadores conta uma versão diferente. O certo é que, envolvidos estiveram três homens – Bill Finger, o argumentista, Bob Kane, o desenhador, e Jerry Robinson, o outro desenhador.

Independentemente de se dar mais crédito a uns ou a outros, o certo é que o Joker é um híbrido de influências. Robinson produziu um desenho de um joker de baralho de cartas; Finger providenciou inspiração na forma de um rosto de palhaço de Coney Island e, fulcral, uma fotografia do actor Conrad Veidt a representar o desfigurado e sempre a sorrir protagonista do filme de terror de 1928 The Man Who Laughs.

 


Tanto Robinson como Kane (que durante décadas recebeu os créditos de ter sido o único criador de Joker) desenharam o personagem no papel, enquanto Robinson e Finger desenvolveram o conceito de Joker como o némesis de Batman. O resultado final foi um vilão bem diferente dos gangsters e cientistas loucos que o Batman enfrentava na época. Um vilão completamente desprovido de moral, assassino sanguinário e implacável, um louco incontrolável, como deixa antever o primeiro balão que lhe é dedicado na revista número 1 de Batman.

Mas só muitos anos depois, na Detective Comics número 168 de Fevereiro de 1951, Bill Finger criou a mais frequentemente citada história de origem de Joker. Este começou por ser Red Hood, um vilão encapuçado que caiu num tanque de ácido quando fugia do Batman. Quando emergiu, o seu cabelo estava verde, a sua pele branca como a cal e os músculos do rosto tinham-se contraído de tal modo que a sua boca parecia ter um sorriso permanente. Foi precisamente nesta história de origem que Alan Moore e Brian Bolland se basearam para criar muitos anos mais tarde a sua novela gráfica seminal A Piada Mortal que, por sua vez, é essencial para Três Jokers.

Entretanto, dos anos 40 até ao começo dos 70 do século XX, a figura do Joker (e também a do Batman) foi suavizada, em parte pelo castrador código moral (“Comics Code”) que presidia à criação de qualquer comic. Só em 1973, no Batman n.º 251, pelas mãos do argumentista Dennis O’Neil e do artista Neal Adams, é que o Joker volta a matar e fica livre para a carnificina.

Mas é na segunda metade da década de 1980 que o Joker ganha um protagonismo e um negrume inesperados. Primeiro, com o trabalho de Frank Miller na sua obra de 1986 O Regresso do Cavaleiro das Trevas, que não só definiu um género como se estendeu a outros heróis da DC e mesmo às de outras editoras. Aqui, estamos num futuro distópico no qual, tanto Joker como Batman regressam da “reforma” mais perigosos que nunca. O Joker é agora um assassino em massa que parte o próprio pescoço de modo a incriminar o Batman.

Segundo, com a obra de Alan Moore (argumento) e Brian Bolland (desenho), editada em 1988 com o título Piada Mortal. Desta feita, o enfase vai para a relação quase simbiótica entre o herói e o vilão. Moore reintroduz a história de origem do “Red Hood” e reimagina o homem que acabaria por ser o Joker como um comediante sem sucesso obrigado a entrar no mundo do crime de modo a poder sustentar a sua mulher grávida. Num dos seus piores actos de violência, o psicopata deixa paraplégica a filha do Comissário Gordon, Barbara, cujo alter ego era a Batgirl.

Terceiro e último, com a história A Death in the Family, publicada na revista Batman do n.º 426 ao 429 e com capa de Mike Mignola, o criador de Hellboy. Aqui, Jim Starlin (argumentista) e Jim Aparo (desenhador), levam o Joker ainda mais longe. O palhaço do crime espanca brutalmente Jason Todd (segundo Robin) com um pé de cabra, acabando por o matar numa explosão, sendo que foram os leitores a decidir esta morte por voto telefónico.

De 1988 a 2025, é este o Joker que temos – um assassino sem escrúpulos, capaz das maiores atrocidades, um psicopata inteligente, narcísico, para quem parece só existir outra pessoa no mundo – Batman.

Mas, apesar de vários autores se terem dedicado à sua origem, o seu verdadeiro passado continua envolto em mistério, pois é Joker que relata a sua história. Não sabemos se fala a verdade ou se mente. Por isso, qual é o seu verdadeiro nome? De onde vem? E qual é o seu passado?

 

E é neste momento que nos vemos chegados a Batman – Três Jokers, de Geoff Johns (argumento) e Jason Fabok (desenho), acabado de ser editado em Portugal pela editora Devir num único volume de capa dura.

Agora sim…!

Vamos à história!

 

A noite vai longa. Para além do som de asas de morcegos, o silêncio impera na caverna. A calma é interrompida pelo barulho de passos descompassados que descem a longa escadaria. Batman regressa ao complexo de cavernas que se espalha debaixo da sua mansão. Mas algo não está bem. Apoiado em Alfred, o seu fiel mordomo, cambaleia. O ferimento no flanco é grave; o sangue corre abundantemente. Mas Alfred também lá está para isso, para tratar dos ferimentos do seu patrão e amigo Bruce Wayne. As cicatrizes que este ostenta no corpo musculado são numerosas e cada uma conta uma história: um ataque de Bane, uma queimadura pelo Enigma, cortes pela Mulher-Gato, uma dentada do Killer-Croc, trespassado pelo Espantalho, um tiro do Joker, ácido do Joker, corte do Joker, Joker, Joker, Joker…

 


A gargalhada sinistra do Joker ecoa na mente de Bruce que, ao mesmo tempo, recorda a noite fatídica em que os seus pais foram assassinados a sangue frio defronte o seu olhar de criança. Trazido à realidade pela voz de Alfred, Batman não tem tempo para se recompor. A sua atenção é captada pela notícia do dia: os últimos membros da família de criminosos Moxon foram brutalmente executados num restaurante da baixa de Gotham. Uma testemunha identificou o assassino como sendo o Joker que, aparentemente, continua a sua guerra iniciada há décadas contra o crime organizado. A Batman, resta-lhe voltar a colocar o capuz…

 

A ideia da existência de três jokers antecede em muito este álbum e remonta ao n.º 50 da Justice League publicado em 2016. E foi igualmente obra de Geoff Johns e Jason Fabok que explicam brevemente ser essa razão pela qual foi tão difícil a Batman descobrir a verdadeira identidade do Joker.

 

Antes de mais, há que dizer que Batman – Três Jokers foi publicado originalmente na chancela DC Black Label. E isto é sinónimo de histórias com temas mais adultos e complexos e com um nível de violência muito superior à dos comics “regulares”.

 

Johns parece fixar-se na ideia de trindade: 3 Jokers (o Palhaço, o Criminoso e o Comediante), 3 heróis (Batman, Batgirl e Red Hood), 3 influências (o Joker original [criado por 3 artistas], o Joker de A Death in the Family e o Joker de Piada Mortal).

 

A ideia de existirem três Jokers pode ser boa, mas sem uma capacidade narrativa a toda a prova, não passaria de mais uma boa ideia numa história de continuidade que não deixaria marca. Ora, não é este o caso! As capacidades narrativas de Geoff Johns são superiores, meticulosas e extremamente criativas. Atente-se na sequência inicial. Ao longo de 15 páginas, quase sem palavras, Johns apresenta-nos o quotidiano de Batman através das suas cicatrizes. Cada uma corresponde ao ataque de um vilão, sendo que a narrativa vai intercalando cada vinheta de cicatriz com uma vinheta de vilão, dando à história um começo alucinante. Mas a maior cicatriz, envolta no riso macabro do Joker, é a que advém do assassinato dos pais de Bruce Wayne. Logo em seguida, Johns coloca o leitor no chuveiro com Barbara Gordon – a sua cicatriz na coluna remete-a para o ataque gratuito que lhe foi infligido pelo Joker. Por fim, Jason Todd, o Red Hood, luta com os capangas do Joker ao mesmo tempo que recorda o ataque mortal de que foi alvo pelo palhaço do crime. É uma cena longa e alucinante que intercala as vinhetas coloridas do presente com as do passado a preto e branco.

 

Na verdade, Johns apresenta o mote de toda a história nesta sequência inicial. De forma mais profunda, tudo gira à volta de cicatrizes, dos traumas que elas causaram e da maneira como cada um consegue conviver ou ultrapassar esses traumas.

 

A história é um regresso às origens, quando Batman encontrou o Joker pela primeira vez. Mas, de certo modo, é um regresso a Piada Mortal e A Death in the Family. Barbara e Jason passaram por tanto quanto Bruce. Resta saber como é que cada um lida com as feridas do passado e qual o processo de cura. As experiências traumáticas mudam uma pessoa, por vezes para melhor, por vezes para pior. A cura pode ser a certa ou a errada. E é disto, em última análise, que se trata em Três Jokers – a cura, certa ou errada, e a sobrevivência ao trauma.

 

 

De certo modo, Geoff Johns escreve aqui uma história que, não deixando de ser de “super-heróis”, agradará a todos os leitores que vêem em personagens complexos e em temas do foro psicológico uma mais valia para adensar protagonistas. E, de facto, as inúmeras camadas de Batman, Batgirl, Red Hood e dos três Jokers é o que dá a esta história uma das suas duas maiores riquezas, sendo a outra a criação de novos cânones para o universo de Batman.

 

Neste momento, tenho de prosseguir com cuidado pois estes cânones, a serem revelados, são daqueles spoilers indesculpáveis que podem mesmo estragar algum do prazer de ler Batman – Três Jokers. Apesar disso, posso dizer-vos que a história de Joe Chill (o assassino dos pais de Bruce Wayne) e o seu destino são revelados de maneira surpreendente, sendo que as implicações no carácter do Batman são bem profundas. Este, ao final de 86 anos de aventuras, chega mesmo a mudar a perspectiva que tinha do assassino dos seus pais.

 

Outro cânone é o da postura de Barbara Gordon, aka Batgirl, em relação ao trauma causado pelo Joker, mas também a complexidade da sua relação com Batman e, sobretudo, com Jason Todd.

 

Quanto a este, que desde que ressurgiu no universo de Batman tem sido sempre uma alma atormentada e negra, está agora ao nível do próprio Joker, atribuindo lógica aos comportamentos mais amorais.

 

Na verdade, Barbara Gordon e Jason Todd são os extremos opostos neste livro. Quanto aos terríveis traumas causados pelo Joker a ambos, Barbara curou-se bem e ficou mais forte; Jason curou-se mal e é agora um ser ultraviolento.

 

Mas o cânone mais forte e mais original, quanto a mim, é aquele que cristaliza a origem do Joker – homem e monstro – apresentada em Piada Mortal. A obra de Alan Moore e Brian Bolland tem uma profunda influência em Três Jokers. Partindo dela, Johns acrescenta-lhe pormenores, dá-lhe uma reviravolta inesperada e crava a surpresa no espírito do leitor, sem desvirtuar o trabalho de Moore. A partir daqui, se alguém quiser falar da origem do vilão, não o poderá fazer sem ter em conta tanto a obra de Moore como a de Johns.

 

O escritor oferece-nos uma narrativa aparentemente simples, mas perfeitamente calibrada, que tem tempo de mergulhar na loucura e “pancadas” dos personagens ao mesmo tempo que vai destilando várias surpresas de monta.

 

Em muitos aspectos, Batman – Três Jokers é uma homenagem a Piada Mortal. E, no entanto, quando Alan Moore fala de Piada Mortal, ele desconsidera a sua própria obra dizendo que não passa de uma mera história do Batman. É muito séria, muito violenta, mas sem qualquer ligação ao mundo real. Como Moore disse numa entrevista em 2003, “Batman e o Joker não são iguais a nenhum ser humano que alguma vez tenha existido. Por isso, não há qualquer informação humana a ser transmitida.”

 

Esta declaração do autor não é da minha concordância, pensando o mesmo em relação à obra de Johns e Fabok. Três Jokers não é apenas uma história de super-heróis. É certo que tem muita luta e violência, mas a sua cadência não é propriamente a de uma série. É um ensaio acerca da natureza do Joker e da dor que ele infligiu a vários personagens do universo de Batman. Em Piada Mortal, os protagonistas ainda não sentiram a dor provocada pelo Palhaço do Crime; em Três Jokers, essa dor faz já parte das suas vidas.

 

 

Com tanto dito, poderá pensar-se que a história de Johns se foca maioritariamente nos três Jokers, em Barbara e em Jason. E muitos leitores acharão mesmo que Batman é quase personagem secundária. Mas tal não é verdade. Batman – Três Jokers, como já se disse, é acerca de trauma e impotência – a frustrante inabilidade de se conseguir chegar a alguém traumatizado. E Johns consegue retratar um Batman no seu melhor e no seu pior, demonstrando porque a relação entre Barbara, Jason e ele próprio é tão carregada e tensa. Tal como em Piada Mortal, Batman chega mais facilmente ao Joker do que aos seus aliados. A obra de Moore e Bolland termina com o Batman e o Joker a comungarem da mesma piada, rindo-se à gargalhada. A obra de Johns e Fabok termina com Batman a contemplar, por uma janela, a vida que o Joker poderia ter tido.

 

A preocupação do herói para com o vilão, e a empatia que parece nutrir por ele, são mais fortes que as que sente pela sua “família”. E o mesmo se passa com o Joker (ou Jokers) em relação a Batman. Por alguma razão Três Jokers gira à volta da necessidade do Comediante, do Palhaço e do Criminoso criarem um quarto Joker, um que, de algum modo, tenha um forte elo sentimental com Batman, um que este nunca possa esquecer ou ignorar. Um que, sentimentalmente, seja parte indelével da sua vida.

 

 

As vitórias de Batgirl, do derradeiro Joker e até de Red Hood são pírricas. É o nome de Batman sob os holofotes, é Batman que salva o dia, é Batman que encontra a paz e Batman que providência a grande visão final sobre o Joker. Mas tudo às custas daqueles que o rodeiam.

 

Ao longo de mais de oito décadas, muitos foram os autores que deixaram a sua marca na história do Batman. E em cada momento, muitos foram aqueles que reagiram à novidade de cada avanço dramático na narrativa contínua do herói e dos seus vilões. O facto é que o tempo é um terrível e imperturbável depurador que só permite a sobrevivência daquilo que interessa, deixando o resto na sombra ou como uma mera nota de rodapé. Vejo a Piada Mortal como obra que vence Cronos e Batman – Três Jokers ligada para sempre à primeira, ainda que com méritos próprios. Não me interessa se a segunda canibaliza os elementos essenciais da primeira, desde que o faça com originalidade e acrescente algo de importante ao mito do Homem Morcego, sem o desvirtuar. E é isso que acontece na história e narrativa de Geoff Johns que entra em grande na Black Label da DC.

 


Para além da história, Batman – Três Jokers tem um dos seus grandes trunfos na arte de Jason Fabok e nas cores de Brad Anderson.

 

E a homenagem feita por Johns à história de Alan Moore estende-se ao desenho de Brian Bolland através da arte de Fabok. Este mima a grelha de 9 vinhetas de Bolland, embora a utilize mais do que Bolland o fez. Utiliza o preto e branco e os meios tons para nos levar ao passado e muitas das poses dos personagens bem como a composição de algumas vinhetas remetem-nos directamente para a Piada Mortal e para A Death in the Family.

 




A arte de Fabok denota uma maturação e perfeição raras. Para além de não existirem perspectivas ou ângulos errados, desproporções anatómicas ou um lápis preguiçoso nas cenas com muitos figurantes, a sua arte é muito detalhada, precisa e cinematográfica. Não raras as vezes, o leitor tem a impressão de estar a ver um filme com frames salteados, num estilo realista.

 


A extrema expressividade dos seus rostos consegue contar parte da história. Uma expressividade que é posta à prova nos seus grandes planos, e com sucesso. Apesar da máscara, o Batman irradia emoções, mesmo que contidas. Através dos seus rostos, sente-se a tensão que é transversal a toda a narrativa.

 

E depois há os Jokers. Três! Diferentes, mas semelhantes. Visualmente, são as pequenas nuances que os denunciam. E a extrema loucura, a alienação, estão sempre presentes em cada ruga de expressão dos seus rostos. Mesmo aquele que Batman designa como o “Criminoso”, o que parece ser o líder, o que só permite que o sorriso mortal surja nos momentos mais caóticos, mesmo esse tem a loucura no olhar.

 



Também nas cenas em que não há propriamente acção, a arte de Fabok é posta à prova. Mas, também aqui, o leitor não se sente defraudado. A arte sublime expressa em cada vinheta impele-nos a continuar, sem parar, embora, invariavelmente, o leitor abrande a leitura de modo a poder apreciar a delícia que são cada “quadradinho”. Seja pela expressividade já referida, seja pelas texturas das indumentárias, pelos ângulos, pelos jogos de luz e sombra, pela mise em scène, tudo contribui para o prazer visual do leitor.

 


 

As cenas de luta são verdadeiros bailados com coreografias complexas. Não são raras as vezes que estas cenas têm múltiplos intervenientes, quer do lado dos heróis quer do lado dos vilões. Cada vinheta é, por isso, uma multitude de acções; cada interveniente parece ter uma agenda própria, ainda que cada grupo actue em função do seu lado. Há que, mais uma vez, deter-nos em cada cena de modo a conseguirmos acompanhar as batalhas mais intrincadas.

 

Os dois exemplos que se seguem são tão bons como outros quaisquer no livro. Mas o melhor exemplo, quanto a mim, é o palidamente representado pela terceira imagem. Pálido exemplo porque é uma prancha de um conjunto de 10 no qual se desenrola a batalha final entre os heróis e os Jokers. A cena é construída num crescendo, em tons frios, culminando no absoluto caos que parece ir consumir pelas chamas todos os intervenientes. O certo é que, deste derradeiro confronto ninguém sai ileso, nem sequer o leitor!

A maneira de contar a história através de imagens, o planeamento ou arte sequêncial é perfeitamente dominada por Fabok. Aliás, falo com grande mestria, arranjando tempo, no meio de uma acção extrema, de dar ao leitor mais informado não só a complexidade de sentimentos dos personagens como também aquela informação acessória que só um fã compreenderá.

Atentemos na prancha seguinte. O Joker, preso a uma cadeira, consegue, ainda assim, levar Jason Todd perto da loucura. Este aponta-lhe a arma, hesitante e atónito. Recorda o seu trauma – o momento em que o Joker o espancou quase até à morte (aqui, a vinheta homenageia a arte de Mike Mignola para a primeira capa de A Death in the Family). Jason, trémulo, começa a premir o gatilho. Barbara, numa tentativa de evitar o pior, corre para ele. O Joker ri-se descontroladamente e esperneia, preso à cadeira. Barbara lança um batarangue contra Jason. A gargalhada louca do Joker enche o ar. O batarangue ricocheteia na arma de Jason. Este, usa as duas mãos na pistola de modo a ganhar firmeza. A gargalhada do Joker domina a cena. Jason prime o gatilho e o Joker gargalha até ao fim…

 

Para além de tudo o que já se disse acerca da arte de Fabok, não nos podemos esquecer que estamos perante uma história do Batman. E, por isso, convém que aqueles elementos que a definem em permanência estejam presentes. Mais uma vez, Fabok trata estes elementos não só com grande cuidado, mas também com criatividade.

 

Assim, não pode faltar a batcaverna, o “cinto de utilidades”, o batmobile ou uma cidade de Gotham sombria, moderadamente gótica, assolada pela chuva quase constante que ajuda a dar-lhe o negrume que a corrói.

 

A tudo isto, há que acrescentar a paleta de cores de Brad Anderson que contribui em muito para o ambiente tenso, sombrio e misterioso da narrativa.

 


Em suma, Batman – Três Jokers não é apenas mais uma história do Cavaleiro das Trevas. Não é apenas mais um livro para os amantes do Homem Morcego. Aparentemente, não obedece à continuidade dos comics mensais. Obedece sim a uma continuidade à Piada Mortal e A Death in the Family. Mas o leitor nem precisa de ler estes dois de modo a compreender a narrativa, embora ganhe em fazê-lo.

 

Desde 1940, a figura do Joker tem fascinado sempre o público. Por alguma razão, há um filme que lhe é dedicado inteiramente e onde nem sequer aparece o Batman. Aparentemente, sabemos quase tudo acerca do assassino louco, mas, na realidade, sabemos quase nada em relação à sua verdadeira identidade. E se o Joker fosse três pessoas diferentes? Explicaria isso a dificuldade de se conhecer quem ele é de verdade? Esta é a premissa um pouco louca da história criada por Geoff Johns. Mas tem lógica! O Joker é talvez o ser mais múltiplo que existe. Não é um esquizofrénico. É um psicopata-sociopata louco que vive num mundo que o faz rir à gargalhada. Sem escrúpulos, amoral, para quem só existem duas razões para viver: matar com um punchline e Batman. 


Em Três Jokers, mergulhamos na psique do palhaço do crime (não importa se ele é um ou três), mas também na do Batman, da Batgirl e de Red Hood. Todos os momentos dramáticos da narrativa que envolvem a “família” de Batman traumatizada evoluem para uma triste percepção social muito em voga nos tempos que correm: todas as críticas e todos os defeitos são consciencializados e transformados em predicados, em benefícios. Uma situação bem presente nas revoadas de concorrentes participantes no “Big Brother” que se orgulham, acima de tudo, dos seus defeitos. Felizmente, em Batman – Três Jokers, não é o orgulho estúpido que faz avançar a acção. Os sentimentos são mais profundos, e giram à volta da postura radical do Joker, transformado no velho centrismo americano no qual se afirma “o mundo sou eu!”. Lembra-vos algo, caro leitor?

 

Batman – Três Jokers tem tantas camadas que seria possível fazer vários artigos diferentes acerca da história escrita e da história desenhada.


As duas narrativas e o desenho só por si, tentam explicar ao leitor a origem e a vida do Joker que há tantas décadas estão envoltas em mistério. Bill Finger levantou o véu ligeiramente em 1951. Alan Moore e Brian Bolland chocaram os leitores em 1988. Coube agora a Geoff Johns e Jason Fabok deixarem a sua impressão digital nesta saga.

 

No fim da história, parece que o status quo entre Batman e Joker é restabelecido. E a Bat-família parece continuar longe de descobrir a sua verdadeira identidade. Longe das longas noites de vigília à cidade de Gotham, longe das lutas e dos seus mais próximos, vemos Batman a confidenciar a Alfred o seu mais bem guardado segredo – ele sabe qual a verdadeira identidade do Joker, do que subsiste, do que manipulou os outros Jokers ao longo de tantos anos.

 

Piada Mortal é intencionalmente ambígua em relação à história do passado do Joker. Ficamos sem saber se é real ou uma invenção da imaginação tresloucada do vilão. Mas em Três Jokers essa ambiguidade esbate-se e é sugerido que a história é real, ainda que contenha uma reviravolta final.

 

Contudo, não ficamos a saber o verdadeiro nome do Joker. Não sabemos as origens dos outros dois Jokers. E não sabemos qual dos três Jokers era o original. De muitas maneiras, o Joker mantem-se tão misterioso como era no passado, embora agora tenha uma origem mais tangível.

 

O final de Batman – Três Jokers está bem no espírito do próprio Joker. É maleável e ambíguo o suficiente para que se possa dizer “o mistério continua!”.

 

O facto de Batman esconder há tantos anos o segredo da identidade do Joker é uma piada maior do que qualquer outra que o Joker pudesse criar.

 

A piada final!

 

Sem dúvida, um livro a não perder!

 

EXTRAS

 

Deixo-vos agora com alguns extras. Não que sejam particularmente importantes, mas talvez acrescentem, pelas razões mais diversas, algo à leitura de Batman – Três Jokers e à percepção que o leitor possa ter de Jason Fabok.

 

Na imagem que se segue, temos uma homenagem da Fabok ao Batman de Jim Lee na história Hush, mimando a capa de Lee para o primeiro capítulo, também aqui reproduzida.

 



Só para aqueles que gostam de descobrir erros na arte dos autores, vejam como Fabok se esqueceu de sombrear e iluminar correctamente a carta que está sob a sombra de Jason Todd.

 


A capa wraparound (que vai da capa à contracapa) que Fabok e Anderson criaram para Detective Comics n.º 1000.

 

 

Rook: Exodus, série em curso criada por Geoff Johns, Jason Fabok e Brad Anderson, o trio de Batman – Três Jokers, para a imprint da Image, Ghost Machine. Ficção Científica distópica. Aconselho vivamente.

 

 

Por Francisco Lyon de Castro