Tomahawk
Para muitos, pensar na história mais antiga dos Estados Unidos é pensar em “índios e cowboys” e no século XIX americano. Para outros, é recuar ao século anterior e a 4 de julho de 1776, o Dia da Independência. Mas, na verdade, a história ocidental daquela parte do mundo começa com a chegada do navio Mayflower e dos seus 102 “peregrinos” e 30 tripulantes a Cap Cod, Massachusetts, em Novembro de 1620.
É verdade que os EUA têm pouco mais de 250 anos de existência. Mas a história da região com influência europeia remonta a mais de 400 anos atrás, ao momento em que a Virginia Company de James I foi encarregada de colonizar a costa leste da América, baptizada de Virgínia. É precisamente nesta altura que se dá o famoso e muito deturpado episódio de Pocahontas.
Ligeiramente contextualizados, entremos agora no período que nos interessa, o da Guerra dos Sete Anos (1756 a 1763) no seu ano de 1758. Esta é uma guerra que se pode chamar de global pois opõe a Prússia e a Áustria no espaço germânico e a Grã-Bretaha e a França por terras da América do Norte e da Ásia, sendo Portugal aliado dos ingleses e Espanha dos franceses. No entanto, é chamada de Guerra Franco-Indígena pelos americanos e Guerra da Conquista pelos franco-canadenses.
Os britânicos valiam-se a si próprios e tinham dois milhões de pessoas no seu território. Já os franceses, não passavam de 60 000 e dependiam da ajuda dos indígenas.
É neste ambiente bélico que vamos ver desenrolar-se a história de Tomahawk, o novo livro de Patrick Prugne que a Ala dos Livros acaba de publicar numa edição muito cuidada que inclui um generoso caderno de extras contendo 22 páginas de esboços e belas aguarelas.
Vamos à história!
Junho de 1758. Vale do rio Ohio. Um enorme urso-pardo caça um salmão. Squando, membro da tribo Abenaki (grupo Algonquino) observa-o a uma distância prudente, protegido pela floresta virgem. Assim que se sente seguro, apressa-se a ir para a sua canoa e a remar para longe.
Uma nova fornada de soldados acaba de chegar ao Forte Carillon. O sargento que os recebe promete-lhes mosquitos e miséria. Entretanto, o padre Montreuil encontra Jean Malavoy a curar uma bebedeira mesmo ao lado da pocilga. Acorda-o com um balde de água e lembra-lhe que ele agora é um miliciano ao serviço do rei de França. Mas Jean diz-lhe que a sua guerra é outra e envolve um urso-pardo de tamanho fora do vulgar e ao qual falta uma garra.
Abequa fica surpresa por ver Jean. Afinal, o seu homem tinha desaparecido há três dias. Ela leva-o de imediato para o seu tepee e promete-lhe uma noite inteira de amor.
Na manhã seguinte, Squando chega ao Forte Carillon e corre para a tenda da irmã, onde prevê encontrar Jean. Diz-lhe que avistou o Urso na cascata das Três Forquilhas. Sem hesitar, o homem pega nas suas armas e salta para uma canoa. A partir daquele momento será considerado um desertor.
Mais tarde, uma patrulha do Forte Carillon calcorreia a floresta em busca de ingleses. Por breves momentos, param para descansar e regressar depois ao forte. Mas os momentos são ainda mais breves do que esperavam, pois são atacados selvaticamente, por todos os lados, por um grupo de Mohawks liderado por um major highlander e seus soldados. Dos franceses, apenas escapa um jovem soldado.
Perseguido pelos Mohawks e com um terrível destino traçado, o jovem é salvo por Jean Malavoy. Desse momento em diante, os dois vão no encalço do grande urso. Jean só pensa em vingar-se da besta que lhe matou a mãe… mas os Mohawks seguem no seu encalço.
Antes de mais, há que dizer que não é estranho a Patrick Prugne este ambiente de pré-revolução americana bem como o de pós-revolução. Com o argumentista Tiburce Oger já tinha publicado Canoë Bay e depois, a solo, dá continuidade às suas “sagas índias" com Frenchman, Pawnee e Iroquois. É antes de Pocahontas (editado em Portugal também pela Ala dos Livros) que realiza este Tomahawk, e regressa ao Novo Mundo.
A narrativa faz-nos mergulhar em duas tramas distintas. A primeira, num momento muito específico da história da América do Norte. A outra, na história de vingança de Jean Malavoy contra um urso grizzly. Mas o entrecruzamento das tramas é inevitável.
Como já foi dito acima, estamos no período da Guerra Franco-Indígena ou Iroquesa (1754-1763). Guerra esta que opõe as colónias francesas e as britânicas da América do Norte, sendo que cada lado é apoiado por distintas tribos nativas. Em Tomahawk, a tribo dos Abenaki apoia os franceses e a tribo iroquesa dos Mohawk está ao lado dos britânicos.
Os combates sangrentos desenrolam-se sobretudo ao longo das fronteiras da Nova França (actual Canadá) com as colónias da Virgínia até à Terra Nova, mas concentram-se aqui nas imediações do Forte Carillon no ano de 1758.
Em paralelo, corre a história de Jean Malavoy, miliciano francês que deserta do forte para tentar saciar a sua sede de vingança sobre um enorme urso que lhe matou a mãe muitos anos antes. É esta “pequena” história de vingança que vai fazendo avançar a narrativa para os dois desfechos finais – o resultado da luta entre homem e besta (seja ela qual for) e a convergência da trama para a batalha do Forte Carillon em 8 de Julho de 1758, a mais sangrenta da Guerra Franco-Indígena.
Contudo, o mais interessante é que da batalha em si, o leitor tem uma única imagem, de página dupla, mesmo no fim da obra.
O que interessa a Patrick Prugne é o ambiente que circunda o forte durante os dias que antecedem a batalha. As patrulhas que ambos os lados fazem naqueles territórios selvagens do Novo Mundo; as condições difíceis da vida militar; a rivalidade entre Abenakis e Mohawks; a crueldade da patrulha de escoceses das Terra Altas; a vida comum entre franceses e abenakis; a religião e até a miscigenação.
E o leitor ainda consegue aperceber-se que enquanto os franceses tentam integrar-se respeitando os nativos, os ingleses praticam mais frequentemente “a lei da bala”.
Tudo isto é tratado sem qualquer prédica e surge naturalmente por entre as aguarelas sumptuosas de Prugne.
Tal como é importante o ambiente vivido nestas terras selvagens do Novo Mundo, é igualmente importante o rancor visceral que Jean tem pelo urso e que o leva a seguir-lhe a pista e a, eventualmente, matá-lo. As motivações que movem o protagonista através da sua demanda pessoal, assim como a relação entre homem e animal, são dissecadas de igual maneira através do colonizador e da sua confrontação com os ameríndios. No fundo, é o ódio, o rancor e a ambição desmedida que marcam a génese da colonização do Novo Mundo, ainda bem longe da conquista do Oeste Selvagem por ondas sucessivas de emigrantes das mais diversas nacionalidades.
Quanto à arte, não há melhor palavra para a descrever que “sublime”.
O traço do carvão de Patrick Prugne é diluído na beleza das suas aguarelas que aplica directamente em cada página. O verde, o azul e as suas variantes dominam a paleta e transportam o leitor para os territórios selvagens e verdejantes de então. As florestas acidentadas e rochosas, os rios que correm limpos e livres, as árvores que descansam nos locais onde caiem, os cervos que pastam despreocupados e o urso, o grande grizzly solitário que domina majestático toda a paisagem que a vista alcança, estes são os verdadeiros personagens de Tomahawk.
Poderia pensar-se que Prugne, com arte tão delicada, não conseguiria ter a mesma mão nas cenas de acção ou de crueldade. Mas ele consegue magnificar de igual modo momentos doces e momentos violentos. De qualquer modo, a experiência é de tal forma imersiva que quando o sangue é derramado com violência, acaba por ser absorvido pela beleza extrema da paisagem.
A batalha do Forte Carillon não só foi a mais sangrenta das travadas na Guerra Franco-Indígena, como foi também aquela que poderá ter pronunciado a derrota inglesa pelos americanos em 1776. Entre soldados, milicianos e ameríndios, 3600 do lado francês derrotaram 15000 do lado britânico.
A narração de Patrick Prugne é, de maneira quase invisível, instrutiva e pedagógica, não deixando por isso de cativar o leitor com a história de vingança de Jean Malavoy sobre o urso assassino.
A beleza das suas aguarelas é incontestável e consegue transportar-nos com grande realismo para os territórios selvagens da Nova França de meados do século XVIII.
E quando, meu caro leitor, achamos que a história chegou ao fim, eis que surge um caderno de extras de 22 páginas que, em parte dá continuidade à história. Pois é nele que ficamos a saber do destino final de Jean Malavoy, de Abequa, de Squando e até do jovem soldado salvo por Jean. E ficamos também a saber o resultado da batalha de Forte Carillon e do que lhe aconteceu um ano depois. E, para lá da história, temos estudos de personagens e de animais, esboços de pranchas, uma boa diversidade de aguarelas e muito mais.
Tomahawk está à altura das expectativas criadas pelo autor através das suas obras anteriores. O prazer e a emoção são absolutamente alcançados pela leitura desta obra que tanto nos enche a vista como o cérebro.
É a arte sublime ao serviço dos Territórios Selvagens…
Por Francisco Lyon de Castro
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