16/07/2025

Quase disse Descartes

 Cogito Ego Sum


(Deixem-me começar com esta imagem de modo a não espantar o raio do algoritmo)
 

Não tenho como objectivo tornar este texto pesado, mas é inevitável referir-me a René Descartes e ao seu “livrinho” O Discurso do Método. Quanto mais não seja porque o livro acerca do qual agora se escreve corrompe por completo a frase que deixou o filósofo francês famoso até ao fim dos tempos. Cogito ergo sum, que em português se cristalizou como “penso, logo existo”, passa agora, desavergonhadamente, a “cogito ego sum”, ou seja “penso, eu sou”.


E se a frase parece falha de algo, até se aproxima mais da original de Descartes que em francês escreveu “je pense, donc je suis” (eu penso, logo eu sou).


Apartes filosóficos, vejamos agora uns quantos apontamentos do foro neurobiológico-filosófico.


O conhecido neurocientista António Damásio, na sua obra O Erro de Descartes, partilha com o filósofo francês a teoria do dualismo mente/corpo. Mas assinala que o erro do primeiro foi considerar apenas que o cérebro foi criado acima do corpo quando na verdade foi também criado a partir dele e junto com ele. O pormenor parece de somenos importância, mas é definidor do funcionamento da mente ao nível neuroanatómico.


Significa isto, caro leitor, que corpo e mente só funcionam tendo consciência de si. Significa isto que estamos mais próximos de desvendar os mistérios da mente humana.


Significa isto que Luís Louro, ao criar o título Cogito Ego Sum, conseguiu fazer o que faltou a Descartes – ligar a mente e o corpo como seres simbióticos.


Claro que também há quem diga que o Louro só criou este título porque estava na altura a trabalhar para a revista Ego. São as chamadas “bocas da reacção”. Quero crer que a mente de tão reconhecido autor tem uma profundidade que outros querem denegrir.


Dito isto, o livro de que vos vou falar compila os dois volumes de Cogito Ego Sum editados in illo tempore, acrescentando-lhe vários extras numa cuidada edição levada à estampa pela editora Polvo.

 

 

Vamos à história!


Não! Não vamos nada à história porque trata-se aqui de 22 contos curtos, sem qualquer ligação entre eles que não seja aquela relacionada com o erotismo ou com o s€x0 (quase) explícito.


Também há muita nudez para todos os gostos e todos os géneros. É, por esta razão, uma obra que pode ser considerada, de tão inclusiva, perfeitamente dentro do espírito “woke”. Até aqui, aliás como sempre, Luís Louro esteve à frente do seu tempo.


Mas o homem vai ainda mais além, tal como o Buzz, e consegue sublimar a beleza e a atracção desprezadas dos gordos. Tal proeza é corporizada na insaciável guerreira Zobi.

 

 

 


Por outro lado, é reconhecido a Luís Louro o seu desmesurado amor pela natureza. Factor que até o levou, há uns anos, a retirar-se para uma zona campestre nos arredores de Queluz. Neste sentido, a comunhão entre homem e animal é um dos laços que considera sagrados nessa sua paixão por Gaia. Atentem, por isso, às histórias número 15 e 22. Nelas, a comunhão dos seres vivos com a natureza ganha uma nova relevância, o mesmo acontecendo com a guerra dos s€x0s.

 

 

Mas não pensemos que Luís Louro alcança neste Cogito Ego Sum o equilíbrio perfeito entre os s€x0s. Antes pelo contrário! O seu lado woke-feminista fá-lo criar uma galeria de personagens impressionantes na qual o protagonismo e a originalidade recaem a favor do “belo s€x0”. Os homens, esses pobres coitados, são quase sempre meros figurantes.


Temos uma batgirl de mamocas avantajadas, uma capuchinho vermelho com ideias muito próprias acerca do conto de Charles Perrault, uma Wendy que esqueceu o seu Peter, uma guerreira viking que lembra a Red Sonja, “centauras”, “faunas”, fadas e sereias, a tribo das mulheres guerreiras, uma Pamela Anderson em início de carreira e várias mãos cheias de mulheres comuns, bem nutridas, desnutridas, curvilíneas ou retas como uma via verde.


No meio desta imensa galeria feminina há, no entanto, dois homens que se destacam: o famoso John Holmes e o nosso conhecido Tintin que faz uma breve, mas firme aparição.

 


Se há coisa comum entre as histórias são os finais; são todos diferentes…! E ainda bem! Mas, sobretudo, são todos inesperados, o que cria no leitor a expectativa para o desfecho seguinte. É uma espécie de suspense sem crime ou de um terror sem susto. Sabemos que vai acontecer, sabemos quando, mas não sabemos como nem porquê.  E este factor é importante pois torna a leitura rápida e compulsiva, chegando o leitor ao final do livro satisfeito, embora querendo mais.


Afinal, é da natureza humana o inconformismo e o querer mais. E mais, num livro desta natureza, não é algo estranho às mais afoitas e afoitos.

 


É perceptível (até porque já o ouvi dizer isso) que Luís Louro teve um grande prazer em escrever e desenhar as 22 histórias que compõem o Cogito Ego Sum. Desde logo porque permitiu-lhe viajar por universos muito diferentes, desde o espaço sideral ao quarto mais recôndito perdido na cidade, passando pelas paisagens gélidas do norte europeu e pelos bosques mágicos de Avalon. Para quem respira desenhos, a diversidade é a grande sedutora.


Do mesmo modo, essa diversidade serviu para aprimorar a escrita e dominar a arte da história curta, que começara a desenvolver em Jim del Monaco.

 


Há que dizê-lo, aos que eventualmente ainda não saibam, que a presente edição de Cogito Ego Sum é também um acto de amor a vários níveis.


Arrumemos primeiro a parte sentimental.

Quando o primeiro volume de Cogito Ego Sum foi lançado no ano 2000, Luís Louro dedicou-o à sua filha mais nova, a bebé Rebeca Louro, de dois anos. Agora, coube à adulta Rebeca Louro prefaciar a obra do pai num texto em que sobressai o nível elevado do seu QE.


Já à Verónica Louro, filha mais velha e também ela dada às artes do pai, coube a realização do retrato digital de Luís Louro.


Ou seja, uma filha abre a obra e a outra fecha-a. Para um pai, o orgulho não poderia ser maior, como se contacta na dedicatória feita para esta edição.


Depois, o amigo Hugo Pinto escreve um interessante texto analítico da obra e do homem que intitulou “Penso, logo executo”.


E por fim, ainda a nível sentimental, o empenho que o editor e amigo Rui Brito colocou na produção deste álbum.


Cogito Ego Sum ainda brinda os leitores com alguns extras, se bem que os extras maiores estejam reservados às maravilhas de silicon valley (eu cá prefiro o natural valley).


Assim, temos uma ilustração inicial criada propositadamente para esta edição. Guardas iniciais e finais que reproduzem, respectivamente, as capas originas de 2000 e 2001, uma selecção de algumas ilustrações e uma biografia extensa que só não está completa porque Luís Louro não é homem para estar parado. Aliás, se algum maluco houver que se atreva a escrever uma obra biográfica acerca do autor, saiba desde já que, no dia seguinte à publicação já estará desactualizada.


Cogito Ego Sum é uma obra essencial para todos os leitores habituais de Luís Louro e para todas as jovens gerações de novos fãs, excepto a geração actual dos inocentes leitores do Corvinho.


Tirando os penteados de algumas das protagonistas, é um livro que resiste ainda em absoluto ao crivo cruel do tempo.


Para quem tem as edições antigas, para quem há anos houve falar sem conseguir comprar, ou para quem leu este texto e sentiu-se tantalizado… perdão, tentado a comprar, não hesitem…!


Cogito Ego Sum… como quase disse Descartes!


Nota: não julguem negativamente este vosso escriba quando lerem o vocábulo “s€x0”. Não é erro! É apenas uma tentativa, muito provavelmente inglória, de manter este texto activo na internet. É que, hoje em dia, até os malfadados algoritmos são woke. Que enjoo!

 


 por Francisco Lyon de Castro

 

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