Sou Um Anjo Perdido
Há reptos que são lançados aos quatro ventos sem esperança de que sejam ouvidos ou lidos. Eventualmente, significando apenas que apaziguamos as nossas ânsias e desejos dando-lhes forma para além do confinamento a que estão sujeitos dentro do nosso cérebro solitário.
E foi precisamente isso que fiz ao terminar o texto acerca de Sou o Seu Silêncio, a obra de Jordi Lafebre que deu a conhecer ao mundo a personagem cativante e envolvente de Eva Rojas. Aí dizia: “Caro Jordi Lafebre, se me lê, por favor, não deixe que Eva morra aqui!”
Com certeza que o criador catalão não me ouviu, não me leu. Mas fico satisfeito que o meu repto encontre resposta na nova aventura de Eva acabada de publicar em Portugal pela Arte de Autor.
Desenhador de Verões Felizes e de Lydie, onde fez parceria com o argumentista Zidrou, Jordi Lafebre deslumbrou-me com o inteligente Apesar de Tudo (que continuo a recomendar energicamente) e surpreendeu-me com Sou o Seu Silêncio. Pegando na mesma fórmula utilizada neste último, será que Lafebre continua a surpreender e a encantar?
Vamos à história!
A noite começa a ser empurrada por um sol ainda escondido por detrás do horizonte, mas que teima, como em todos os dias, em lançar os seus raios sobre o céu nocturno. Daquele ponto de vista, o casario estende-se a perder de vista e em cada casa as luzes deixam antever o começo de mais um dia atarefado para milhares de famílias. Bem ao longe, a Sagrada Família reina em altura. Eva Rojas equilibra-se perigosamente na ponta do longo braço de uma grua. Mas não está só! Acompanham-na aquelas mulheres da sua família; “espíritos”, presenças habituais nos seus pensamentos que teimam em interferir na sua vida. Mas desta vez, tentam evitar o pior. A queda seria fatal…
A inspectora Merkel é chamada a um estaleiro de construção na periferia de Barcelona. No local, encontra-se com o agente Garcia que a leva até ao corpo ou melhor, até às duas pernas que pressupõem o resto do corpo mergulhado no betão fresco. A identidade do morto é desconhecida, mas as tatuagens que tem nas pernas indicam ser um neonazi. Quem é ele? Qual a causa da morte e, sobretudo, como foi ali parar?
Garcia foi o primeiro agente a chegar ao local. Seguia uma pista relacionada com o caso da morte de Violeta Bellecour no qual a vítima podia estar implicada. O agente dá à inspectora a boa notícia de que há uma testemunha ocular… e a má notícia de que é Eva Rojas. Eva, a testemunha de outro crime acontecido há um ano e cinco meses.
Aliás, Eva encontra-se sentada ali perto, a fumar um cigarro enquanto aguarda a chegada de Merkel. Esta não está particularmente satisfeita por a reencontrar. Eva cumprimenta-a efusivamente e assegura-a que se trata de uma história muito simples. Mas a inspectora sabe que nada vindo de Eva é simples. E, de facto, Eva recusa-se a falar sem estar na presença do seu… psiquiatra.
Quando li Sou o Seu Silêncio, fiquei encantado com a personagem de Eva Rojas. De comum não tem nada! Invariavelmente de cigarro na boca, nunca diz não a um copo, não tem parceiro fixo e é uma psiquiatra muito particular. À inteligência e argúcia tem associado um historial clínico de desequilíbrios mentais. Na verdade, é uma psiquiatra Bipolar ou com a Perturbação da Personalidade Borderline (ainda não percebi qual), assombrada por três antepassadas que tanto a aconselham como lhe enchem a cabeça de disparates. Para além disso, é gira de uma forma desconcertante, sexy, bissexual e tem a mania de se armar em detective.
Jordi Lafebre criou-a assim, mas parece-me que este é dos casos em que um personagem ganha vida própria quase ultrapassando a vontade do seu criador.
E assim, Eva regressa com mais uma aventura de ego associada ao verbo “ser”. De Sou o Seu Silêncio passamos agora a Sou Um Anjo Perdido. Tudo muito psicanalítico, dir-me-ão. Bom, na verdade esse é um dos grandes trunfos de Lafebre – tratar de temas muito sérios, como é a saúde mental, de uma forma que pode parecer ligeira, não o sendo. Vê-se que o autor teve o cuidado de estudar o assunto e, assim, conferir a Eva todas aquelas características principais da bipolaridade: entusiasta, temerária, cheia de ideias, muito enérgica e, ao mesmo tempo, atreita a cair em depressão. Uma heroína dos nossos tempos.
Por outro lado, não é uma heroína modelo. A sua vida é uma confusão, fuma desalmadamente, trata o álcool como amigo, as suas relações sexuais são episódicas, mas é uma excelente psiquiatra. Nas mãos de Lafebre, Eva é humana, frágil, cheia de falhas e, paradoxalmente, forte.
Devo dizer ainda que Eva tem várias tatuagens pelo corpo. Até aqui, nada de extraordinário. Só que elas em Eva representam estados de alma e justificações psicanalíticas da sua saúde mental. Desta vez, somos brindados com as asas de anjo que tatuou nas omoplatas. Anjo, símbolo da inocência, ser incorpóreo que sofre sempre que desce ao mundo dos homens. Anjo: Eva ou João dos Mundos, um jovem futebolista desaparecido e paciente de Eva?
E é neste ponto que os dotes narrativos de Jordi Lafebre se revelam mais uma vez, pois é o desaparecimento do inocente João dos Mundos que despoleta os instintos detectivescos da nossa Eva. A desculpa perfeita para o autor aflorar vários temas de fortes contornos sociais como é o mundo do futebol de alta competição, a corrupção, a prostituição, os transgéneros, o neonazismo e o crime organizado.
Mas para o leitor que leia este livro sem preocupações de maior, o que fica é o enredo policial e a personalidade carismática de Eva. Tudo o resto parece passar a acessório.
Tal como em Sou o Seu Silêncio, a estrutura narrativa mantém-se semelhante. Presente e passado misturam-se como um “presente constante”. No consultório do Dr. Llull, acompanhada da inspectora Merkel e do agente Garcia, Eva relata os acontecimentos da semana anterior que levaram à morte de Ricardo “Riqui” Mazas a que assistimos no princípio. Mas ao contrário do que acontece invariavelmente nos policiais, sobretudo nos noir, a voz-off é substituída por inúmeros flashbacks que funcionam como presente, como se estivéssemos a assistir em directo ao desenrolar do caso e dentro da cabeça de Eva. É-nos assim permitido entrar dentro da sua personalidade, de experimentar os seus sentimentos, as suas dúvidas e os seus prazeres.
São muitos os exemplos que poderia dar desta estrutura, mas escolho dois nos quais as capacidades narrativas de Lafebre atingem a apoteose. O primeiro passa-se aquando da visita de Eva à mãe, personagem central da sua personalidade pois é ela que, de algum modo, lhe transmite as “vozes” das antepassadas. Na cena, será das poucas vezes que a expressividade facial de Eva se reduz momentaneamente a uma contenção triste.
O segundo, pelo contrário, exprime bem em três páginas a excitação inerente ao relato da noite de sexo que Eva teve com Garcia. Pelo inusitado e por ser feita em público, lembra até a famosa “cena do orgasmo” protagonizada por Meg Ryan e Billy Crystal no filme Um Amor Inevitável (When Harry Met Sally). O relato é feito no consultório, de forma empolgada e vibrante, perante os olhares de Llull, Merkel e Garcia, sempre no presente, mergulhando o leitor no passado apenas numa breve vinheta pós-sexo. Caramba! Até dá vontade de fumar um cigarro!
Mas a dinâmica da narrativa seria bem menos condimentada se dela estivessem ausentes as contrapartes de Eva, as “presenças” ancestrais das decanas da família, que a seguem constantemente e que lhe dão conselhos, críticas e conforto. É uma espécie de esquizofrenia lúcida na qual as vozes em uníssono resultam em temperança e oferecem ao leitor bons momentos cómicos.
São sempre três vozes, três presenças. E se na primeira aventura policial de Eva Rojas, ela era acompanhada pela presença da sua avó, da sua tia-avó miliciana republicana e de Maria Dolores Rojas de destino trágico, agora esta última desapareceu, após a psiquiatra curar uma das suas “feridas” familiares. Contudo, quando uma “presença” desaparece, logo surge outra. Neste caso, o papel cabe à bisavó de Eva, a matriarca da família e extremamente crítica da jovem. Pelo meio, somos ainda brindados com o resultado das andanças da tia-avó pela Guerra Civil de Espanha.
Sou Um Anjo Perdido é um pouco mais sombrio que o volume anterior, mas nem por isso deixa de estar pejado de humor e sarcasmo que temperam a abordagem às questões mentais e a outros assuntos igualmente sérios. Mas ao integrá-los com respeito e ternura num quotidiano e num policial, Jordi Lafebre consegue dar à nossa protagonista autenticidade, impertinência e liberdade, tudo envolvido pela imprevisibilidade que bem caracteriza Eva Rojas.
Por fim, Sou Um Anjo Perdido pode ser lido de maneira independente. Se bem que a leitura de Sou o Seu Silêncio torna este segundo volume mais rico e a evolução dos personagens mais perceptível.
Jordi Lafebre é igualmente talentoso como escritor e desenhador. A sua arte é expressiva e virtuosa. O seu traço particular é um jogo de equilíbrio perfeito entre a caricatura e o realismo.
Os personagens têm vida própria e não se limitam a ser expressivos. Cada um deles é detentor de uma panóplia de expressões e micro-expressões próprias. E é isso, por exemplo, que torna a personagem de Eva tão rica e única. Aparentando, sobretudo, uma espécie de apatia facial, ela contradiz as suas expressões com gestos largos e com as mensagens que aqueles grandes olhos azuis nos enviam. Já a sua bisavó, seca como uma ameixa velha, destila azedume através da sua cara constantemente “fechada”.
Também as ambiências que cria, depuradas de grandes pormenores, mas sintetizando conceitos que mergulham inconscientemente no nosso espírito, são escrupulosamente arquitectadas para que o efeito seja pleno e não nos obrigue a pensar; apenas a disfrutar. E é assim que temos o consultório do Dr. Llull repleto de sofás e divãs, forrado com extensa estantaria carregada de livros e um terraço de onde se observa Barcelona. Tudo regado a cores quentes e doces. Já o sítio onde se encontra a mãe de Eva é despojado e dominado apenas pelos seus desenhos colados nas paredes pintadas com o verde acinzentado da agonia. E os ambientes nocturnos do bas-fond barcelonês são dominados por corpos e uma envolvência de azuis e violetas. Como se vê, Lafebre é também bom a criar paletas inteligentes de cor.
E depois há ainda aquela qualidade muito sua de conseguir manter o interesse do leitor ao longo de vinhetas que sabem jogar sabiamente com a narrativa e a expressividade dos personagens. Vinhetas que ilustram momentos banais, de continuidade na narrativa, mas que são sempre estranhamente especiais. O Dr. Llull entretido entre consultas, a regar as plantas do seu terraço. Eva e Garcia numa esplanada; ela leva uma caneca aos lábios, enquanto ele dá uma dentada monstra numa baguete. Eva sentada numa sanita numa casa de banho mista. Eva a acender um cigarro com Barcelona a perder-se no horizonte. Os exemplos surgem às dezenas e o leitor vê-se a contemplar as vinhetas aparentemente mais banais. E é essa uma das magias geradas pela arte de Jordi Lafebre – aquela capacidade de encantar de uma forma da qual ignoramos a mecânica e que preferimos que se mantenha de certa maneira misteriosa.
Jordi Lafebre tem uma sensibilidade narrativa muito própria que se torna numa coisa só quando se junta ao seu desenho. O conjunto dos dois apelida-se de arte.
Sem dúvida que a narrativa tem lugar de destaque na sua obra, permitindo uma história dinâmica, enriquecida pelo desenho.
O enigma policial é apenas um pretexto. Pretexto para conhecermos Eva, convivermos com ela, mergulharmos na sua intimidade. E tal como aconteceu no primeiro livro, é-nos dada apenas uma semana para fazê-lo. Uma semana da vida dela que é suficiente para nos encantar e para nos enlouquecer. Por detrás daqueles grandes olhos cintilantes, descobrimos uma mulher cativante e inteligente que, nos seus silêncios, disfarça o caos em que se encontra a sua saúde mental.
Mas se o leitor se centrar apenas em Eva, perde a riqueza de todo o elenco que a envolve, muito centrado num universo feminino, mas que nem por isso deixa de ter no Dr. Llull e no agente Garcia figuras de autoridade, de certa forma paternalistas e verdadeiros contrapontos da envolvente, enérgica e divertida psiquiatra.
Entre o policial, a acção, as questões de saúde mental e a família, temos ainda o humor refinado de Lafebre que, invariavelmente, serve de descompressor dos assuntos mais sérios.
Eva, mulher forte, fragilizada, que procura exorcizar-se através do riso de modo a não chorar. Mas este seu credo tem limites e não poderá eternizar-se face ao peso constante da realidade.
Eva é posta numa cela. Mas não está só! São oito as prostitutas que lhe fazem companhia; talvez apanhadas numa rusga. Em pé ao seu redor, com aspecto de poucos amigos(as), tentam intimidá-la. Mas Eva permanece sentada, exausta, de cabeça encostada à parede fria. Então, uma das mulheres parece reconhecê-la como “a miúda que salvou as raparigas da zona desportiva…”. Como muitas vezes em circunstâncias em que entra em acção a psicologia da multidão, começam a efabular Eva. E daí a atribuírem-lhe “superpoderes de espia” vai uma breve sinapse. Exultam, batem palmas, dão-lhe os parabéns. Eva liberta uma lágrima solitária, assoberbada pela genuinidade inusitada das suas companheiras de cela. Enquanto elas continuam a falar incessantemente, Eva adormece, aninhada num banco comprido, frágil, serena, resolvida (?). Mas consegue dormir finalmente. Lá fora, o casario de Barcelona estende-se até ao mar. O dia desponta, como despontara no começo desta aventura. E como Eva merece despontar mais uma vez.
Mais uma vez, caro Jordi, lanço-lhe o repto: por favor, não deixe que Eva morra aqui!
P. S. No final, o leitor é brindado com um caderno suplementar de 14 páginas nas quais Jordi Lafebre nos revela algumas das suas memórias antigas de Barcelona, entremeadas com variados esboços dos seus personagens.
Por Francisco Lyon de Castro.











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