Fábulas das Terras Perdidas
Ciclo 1 - Sioban
Há autores que, não tendo por trás de si aquela máquina bem oleada que é a dos comics mensais norte-americanos (em que um escreve, outro desenha a lápis, outro passa o traço a tinta, outro pinta e outro faz a balonagem), conseguem, no entanto, juntar em si todas (ou quase todas) estas funções e ainda dividirem-se por dois ou mais projectos sem perder a qualidade.
No caso presente, falo de Grzegorz Rosinski que, ao mesmo tempo que se encarregava da realização artística dos álbuns 19 a 23 da mítica série Thorgal, aceitava o convite de Jean Dufaux para, em conjunto, iniciarem um novo projecto: as Fábulas das Terras Perdidas.
De 1993 a 1998 e ao longo de quatro álbuns, Dufaux e Rosinski criaram um novo universo, ambientado numa Idade Média fictícia na qual os jogos de poder andam a par com a feitiçaria e com os mais vis actos sanguinolentos.
E se neste primeiro ciclo das Fábulas os dragões estão omissos, os tronos e a luta para os manter ou conquistar é uma constante.
E tudo antes da Guerra dos Tronos que surgiria apenas três anos depois.
Sioban, o Ciclo 1 das Fábulas das Terras Perdidas é, por isso, a génese da Alta Fantasia com incursões pela política. Mas é também a génese de uma saga que comporta já quatro ciclos e que deve ser lida também como um todo, como veremos mais à frente.
Em boa hora a Arte de Autor publica o integral do Ciclo Sioban, numa edição de luxo com uma capa com verniz de selecção aveludado e um caderno de 14 páginas de extras.
Vamos à história!
O mago Bedlam reina com poder absoluto sobre as terras de Eruin Dulea desde o dia funesto em que matou Wulff o Lobo Branco, herdeiro dos Sudenne. Mas nada é irreversível e o usurpador sabe-o bem pois conhece as lendas do seu país. Entre dentes, ele murmura que as fábulas das terras perdidas ressoarão assim que florirem de novo as árvores da verdade. Então, os heróis caídos na terrível batalha de Nyr Lynch reerguer-se-ão e seguirão aquele ou aquela que os saiba levar à vitória.
Sioban, a última da linha dos Sudenne, não sabe ainda que irá ser essa mão vingadora. Por agora, contenta-se em aprender o ofício das armas. Mas nela está instalada a tristeza e desconfiança. Como é que sua mãe, Lady O’Mara, tão casta e bela, pode ir casar em segundas núpcias com esse homem maléfico e tenebroso que é o Lorde Blackmore? Será que ela já esqueceu o seu marido e pai de Sioban, o Lobo Branco? Mas nada é assim tão simples. Esta aliança é necessária para o país de Eruin Dulea que necessita de uma mão férrea e poderosa para sobreviver após a tomada de parte do poder pelo mago Bedlam.
A lenda misteriosa que prediz que um dia soará um lamento nas terras que viram partir Lobo Branco e o seu exército para o outro mundo atormenta Bedlam, alimenta a sede de poder de Lorde Blackmore, dá esperança a Lady O’Mara e envolve em silêncio Sioban. Um lamento que avisa que os que morreram voltarão e irão designar aquele que continuará a luta contra os usurpadores…
Juntar Dufaux – um dos melhores argumentistas das últimas décadas – e Rosinski – o inspirado cocriador de Thorgal – é ter a receita para o sucesso.
Neste primeiro ciclo das Fábulas das Terras Perdidas, composto pelos álbuns Sioban, Blackmore, Dona Gerfaut e Kyle de Klanach, os dois transportam-nos para o universo de Sioban, princesa sem reino, mas animada por uma extraordinária sede de vingança e de reconquista.
Dufaux, mestre narrador, sabe bem o que faz. Este Ciclo Sioban divide-se em dois arcos de história, cada um com direito a dois álbuns. E se no primeiro Dufaux mostra toda a sua energia criativa, no segundo contem-na e cimenta as linhas definidoras do seu novo mundo.
Em Sioban e Blackmore, há que prender toda a atenção do leitor para algo de novo. Há que dar a conhecer todos os personagens principais, a história que decorre no tempo presente da leitura e aquela que nos mostra os acontecimentos passados que definem o presente. Um presente ambientado em uma Idade Média fantástica, glorificada por castelos, fortalezas, cavaleiros de armadura, donzelas puras e outras nem tanto, salões onde decorrem lautos banquetes, feitos de armas, batalhas épicas e a plebe que vive à margem de heroísmos e do correr das façanhas.
Mas se a inevitabilidade de utilizar estes elementos na narrativa é compreensível dentro do género, Dufaux vai bem além dos clichés. As Fábulas das Terras Perdidas possuem a força dos contos fantásticos sabiamente misturada com a magia das lendas celtas e a crueza das sagas nórdicas. Força, magia e crueza que criam as condições para que o leitor possa mergulhar em um universo sombrio, violento, bem longe das séries de fantasia heroica. Aqui, são os homens, bons ou maus, que tentam escapar ao seu destino ou, pelo contrário contribuem para que ele se realize. Uns e outros sem consciência de que poderão ser heróis ou vilões, sabendo que a única coisa que conta é a sobrevivência num ambiente hostil.
As Fábulas das Terras Perdidas é uma BD séria que tem como únicos momentos de descompressão as peripécias de Ouki, a pequena criatura azul que dá cabo da paciência de Lam, o mestre cozinheiro do castelo dos Sudenne, e o amor enganosamente platónico entre Droop, o mestre de armas de Sioban, e Dona Gerda, aia da rainha. Mas estas duas válvulas destinam-se apenas a aliviar o peso desta história trágica perfumada de irrealidade.
Esta história que Dufaux nos oferece, digna das grandes epopeias fantásticas, mistura realidade e lenda, tornando-as de tal modo intrincadas que acabam por se confundirem. Levado por personagens carismáticos, este conto, logo desde o início, cria um ambiente deveras opressivo, reforçado por uma narrativa de grande qualidade poética. Eruin Dulea está, invariavelmente, coberta pelas brumas ou por chuvas copiosas que parecem deixar adivinhar a tragédia.
Dufaux sabe contar, sabe fazer avançar a narrativa. As peças do puzzle, plantadas aqui e ali, acabam por se encaixar na perfeição e dão a consistência necessária a um universo brilhantemente construído e com um ambiente muito particular. E mesmo que o primeiro momento do segundo arco da história tenha uma narrativa mais lenta, tudo é compensado no derradeiro acto e numa série de reviravoltas credíveis em fecho de ciclo.
Mas às qualidades narrativas de Dufaux temos de acrescentar o virtuosismo artístico de Rosinski.
Em 1993, quando foi publicado o primeiro álbum, a expectativa de ver o desenhador de Thorgal embarcar noutro projecto era muita. Mais de trinta anos passados, a expectativa esbateu-se, ficando o deleite de ver Rosinski fora do registo da saga nórdica. E, no entanto, estamos muito próximos, graficamente, de Thorgal. Por momentos, ao vermos a vinheta que abre a página 140 da presente edição até somos levados a pensar na discreta semelhança que tem com a imagem das guardas dos álbuns de Thorgal.
Este é dos casos em que os desenhos de um autor se misturam na perfeição com as palavras do outro autor. Uma história trágica, com laivos de saga, na qual a política e os jogos de poder enegrecem ainda mais a fragilidade da alma humana, não poderia ser melhor representada do que com os cenários brumosos, terras inóspitas, rochedos ameaçadores e céus sombrios criados por Rosinski.
Mas a arte do desenhador polaco mostra aqui todos os predicados a que nos foi habituando ao longo da sua carreira.
Desde logo, o domínio absoluto da sombra e da luz. Rosinski sabe criar como ninguém aquele tipo de imagens que, se estiverem ausentes de cor, deixam adivinhar todas as tonalidades. E isso consegue-o através de um jogo complexo e minucioso do preto e do branco. Ora, quando as imagens são coloridas, o impacto é ainda maior, como acontece, por exemplo, com a prancha da página 43 que agora se reproduz. O jogo é subtil. As quatro primeiras vinhetas vão do mais luminoso para o muito sombrio, subsistindo apenas uma réstea de luz no rosto do protagonista. Mas nas quatro últimas vinhetas, o efeito é o contrário – do mais sombrio para o mais luminoso, sendo este de novo o rosto do protagonista.
Outro bom exemplo deste domínio é o da vinheta que se segue. Aqui, o predomínio é o da sombra que cobre o último plano e avança pelos flancos, envolvendo a luminosidade que se aproxima do leitor, vinda de um segundo plano. Já o primeiro plano vê sombra e luz misturadas na perfeição.
Por fim, como exemplo, temos a cena nocturna da página 127. Os cinzentos e o preto dominam e são quebrados apenas pela luminosidade fugaz da chuva. E para que o leitor não perca o foco da cena, um único e solitário ponto de luz quente que nos indica onde a acção se vai desenrolar.
Para além do domínio da sombra e da luz, Rosinski tem como outro predicado a capacidade de compor paisagens como ninguém. Paisagens que não são apenas bonitas, mas que desempenham o seu papel na narrativa e a tornam única e inesquecível. Deixo-vos dois exemplos sem mais explicações.
A isto, há que juntar o seu sentido de profundidade, com os pontos de fuga a perderem-se em horizontes longínquos, como é o caso com todos os bons pontos de fuga.
Para além do domínio da sombra e da luz, da composição de paisagens inesquecíveis, de um apurado sentido de profundidade e da capacidade de criar personagens visualmente marcantes, Rosinski é também mestre a desenhar cenas de acção, do micro para o macro, do duelo à carga de cavalaria, do embate de dois exércitos ao intricado de lanças nas abordagens das batalhas navais, como é o caso que se segue.
Por fim, e adequado ao tom poético criado por Dufaux para a sua narrativa, Rosinski consegue desenhar momentos em que quase sentimos os versos do bardo a serem declamados ao redor de uma lareira crepitante. As palavras estão ausentes e a simplicidade é apenas aparente. Em um e outro exemplo que se seguem, os elementos centrais da narrativa estão lá. No primeiro, a árvore da verdade; no segundo, a entrada brumosa das Charnecas Perdidas.
Este volume integral do primeiro ciclo das Fábulas das Terras Perdidas é incontornável para qualquer apreciador da Nona Arte. Seja pela qualidade da história criada por Jean Dufaux, seja pela qualidade artística de Grzegorz Rosinski.
O Ciclo Sioban tem méritos próprios e lê-se como coisa única. Mas, na verdade, é a génese de algo mais grandioso. Nos anos que se seguiram à sua parceria com Rosinski, Dufaux aliou-se a três conceituados criadores e com eles criou os ciclos 2, 3 e 4, sendo que apenas o segundo está terminado. Aliás, é este segundo ciclo, o dos Cavaleiros do Perdão, que a Arte de Autor se prepara para publicar em Portugal, desenhado pelo grande Philippe Delaby, entretanto falecido, e com quem Dufaux fez nova parceria na criação da série peplum, Murena. Béatrice Tillier (conhecida dos portugueses através do álbum Fadas e Ternos Autómatos) está a terminar o terceiro ciclo e Paul Teng, o quarto.
Entretanto, leiam ou releiam esta aventura plena de imaginação, de sonho, de magia, de lendas e maldições. A história de uma família real atormentada, pelas palavras de Dufaux e pelo desenho de Rosinski. Os dois criam a génese da grandiosidade, onde até os piores momentos são plenos de poesia. Ou não pairasse no ar o mote “…o mal reside no coração do amor.”
Por Francisco Lyon de Castro